Número de alunos com deficiência está em expansão nas instituições de ensino superior
Compartilhe
Por Flávia
Siqueira e Marina Almeida
O desafio
agora é trabalhar a retenção destes estudantes, para garantir uma inclusão com
permanência
Stephanie Bianezi, aluna da Universidade Anhanguera: percepção de que no ensino superior as pessoas são mais tolerantes com as diferenças (foto: Bruno Ascenso) |
Felizmente,
parece ser um caminho sem volta: estudantes com deficiência estão chegando cada
vez mais às universidades. Dados do Censo
da Educação Superior apontam um aumento de 113% no número de alunos
com deficiência matriculados em cursos de graduação entre 2009 e 2018.
Deficiências físicas são as mais frequentes, seguidas de baixa visão,
deficiência auditiva, deficiência intelectual, cegueira e surdez.
De acordo
com o professor Ricardo Lins, que desde 2001 trabalha com o tema na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o principal desafio hoje é
garantir a permanência, com qualidade, desses estudantes nas instituições de
ensino. Apesar dos avanços, ainda há uma lacuna entre o que está proposto em
leis e convenções e a vivência real. “Muitas universidades têm feito um bom
trabalho, mas a evasão de estudantes ainda é um problema. É claro que isso
atinge não só os alunos com deficiência, mas essa característica ainda é um
fator de maior vulnerabilidade.”
Tornar
espaços e experiências acessíveis significa enfrentar uma série de barreiras
que, em maior ou menor grau, persistem na vida social. Lins explica que, na
base de todas elas, estão as barreiras atitudinais, que se expressam em
comportamentos preconceituosos, intencionais ou não. “É fato que já avançamos
bastante, mas em todos os níveis da educação ainda existem relatos, por
exemplo, de professores que não aceitam certos alunos. Quando enfrentamos as
barreiras atitudinais, abrimos espaço para trabalhar todas as outras dimensões
da inclusão e da acessibilidade.”
‘Herança’
a superar
Carla
Mauch, coordenadora da ONG Mais Diferenças, aponta que a maioria das pessoas
que está no mercado de trabalho foi formada por sistemas educacionais
fundamentados na separação e na exclusão das diferenças. Ainda somos carentes,
portanto, no que há de mais básico: convívio. Isso ajuda a explicar por que
ainda é comum vermos professores e estudantes de licenciatura aflitos com a
possibilidade de receber alunos com alguma deficiência. Mauch acrescenta que
também é preciso rever as grades curriculares dos cursos superiores de todas as
áreas, de modo que o tema da acessibilidade não fique restrito a disciplinas
específicas ou optativas.
Mauch e
Ricardo Lins afirmam, ainda, que a perspectiva clínica e diagnóstica, que
persiste na formulação de algumas diretrizes de inclusão, é reducionista e
causa distorções. Lins cita, como exemplo, a Lei de Cotas em universidades
federais: ela é necessária, mas merece passar por uma análise mais detalhada. A
aplicação da lei, por enquanto, não dá conta das diferenças que existem dentro
do próprio universo de diferenças. Os obstáculos enfrentados por uma pessoa com
cegueira total não são os mesmos de um estudante com visão monocular (cegueira
de um dos olhos). Então, como garantir a equiparação de acesso à universidade
de forma justa, levando em conta essas especificidades? A resposta ainda
precisa ser construída, e para isso é necessário aprofundarmos as discussões.
Vivências
e práticas
Um relato
comum entre os estudantes com deficiência que chegam ao nível superior é a
trajetória escolar marcada por separação – muitos frequentaram, ao menos
temporariamente, as chamadas “escolas especiais” – e por comportamentos
preconceituosos de colegas e professores nos ensinos fundamental e médio.
Stephanie Bianezi, formada em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade
Anhanguera, agora faz MBA em Gestão de Pessoas na mesma instituição. Cadeirante
em razão de paralisia cerebral, ela passou por diferentes tipos de escola e
encontrou, no ensino superior, um ambiente muito mais tranquilo e aberto do que
nas etapas anteriores. “Talvez por serem mais maduras, as pessoas são bem mais
abertas”, avalia.
Bianezi
elogia os docentes da faculdade e da pós-graduação e conta como foi importante
a atuação de um professor de Matemática que detectou que ela tinha discalculia.
Em uma prova, ele percebeu que a aluna seguia o caminho correto para solucionar
as questões de cálculo, mas embaralhava os números durante a resolução. “Ele me
chamou para conversar, explicou do que se tratava e passou a elaborar provas
diferentes para mim, em que o mais importante era indicar o caminho da solução,
e não dar uma resposta exata.”
Elizete
Soares, diretora da Anhanguera Vila Mariana, onde Stephanie estuda, chama
atenção justamente para a importância da orientação aos docentes e da
acessibilidade pedagógica. “Precisamos ter processos diversificados, com
possibilidade de flexibilização do tempo de prova, contratação de intérpretes
de Libras e transcritores, disponibilização de texto ampliado, entre outras
estratégias. Um passo muito importante é sensibilizar professores e funcionários
para isso.”
Na
Anhanguera, explica a diretora, os docentes têm acesso a uma universidade
corporativa, com trilhas de capacitação voltadas à educação inclusiva. As
necessidades dos estudantes são mapeadas já no processo seletivo, quando eles
declaram ter ou não alguma deficiência. Em seguida, o cadastro e o
encaminhamento das solicitações de recursos são feitos pelo Núcleo de
Acessibilidade, Inclusão e Direitos Humanos (NAID) da universidade. Elizete
destaca, contudo, que nada deve ser imposto. “Precisamos respeitar a vontade do
aluno e a percepção que ele tem sobre as próprias habilidades e necessidades.
Karina
Tomelin, responsável pela área de Formação Docente e Apoio Discente da
Unicesumar, com sede em Maringá (PR), faz uma análise semelhante: “cada pessoa
é um ‘mundo’. Apesar das classificações, a forma como cada estudante lida com um mesmo tipo de deficiência pode ser diferente.
Enquanto um aluno surdo se comunica em Libras, outro pode preferir a linguagem
escrita ou fazer leitura labial”.
Além de
oferecer atendimento por demanda aos docentes, o setor de apoio da Unicesumar
procura orientá-los já a partir da contratação, mesmo que o professor ainda não
tenha alunos com necessidades específicas em suas turmas.
Sobre o
enfrentamento de barreiras atitudinais, Tomelin cita o exemplo de um estudante
cego matriculado na instituição. “Percebemos que os outros alunos da turma
tinham pouco contato com ele. Sugerimos organizar uma conversa entre todos, e
esse estudante concordou. Ele se dispôs a responder perguntas dos outros
alunos. Eram questões sobre vários assuntos, da forma como ele sonha até como
ele prefere ser cumprimentado.” Mais tarde, o estudante relatou ter ficado
surpreso com o resultado: os outros alunos agora lhe davam “bom dia” e estavam
muito mais próximos dele. Outra evidência de que a convivência e a abertura ao
diferente são aspectos fundamentais.
A
Unijorge, com sede em Salvador, tem uma abordagem semelhante. A partir do
cadastro e da autodeclaração dos estudantes, o Núcleo de Acessibilidade da
instituição faz direcionamentos específicos e entra em contato com todos os
professores das disciplinas que compõem as grades curriculares de alunos com
deficiência. Ana Soares, coordenadora do núcleo, destaca a importância da
oferta de conteúdos em diferentes formatos. “Já existem recursos de tecnologia
disponíveis que ajudam bastante, como softwares que convertem texto em áudio,
impressoras de Braile e adaptadores com lente de aumento para bibliotecas”.
Próximos
passos
Guilherme
Marback Neto, reitor da Unijorge, afirma que é muito importante que as
universidades se abram para as diferenças também em seu quadro de funcionários e docentes, o que contribui para que as pessoas com
deficiência tenham participação garantida na elaboração de estratégias de
acessibilidade. Aqui, vale lembrar o lema do movimento internacional de pessoas
com deficiência: “nada sobre nós, sem nós”.
O
estudante de Pedagogia Danilo Santos, que tem surdez e se comunica
principalmente por Libras, aponta a necessidade de as universidades darem mais
atenção à acessibilidade nos espaços fora da sala de aula, como bibliotecas e
lanchonetes. “Ainda há dificuldades de comunicação entre alunos surdos e
funcionários nesses ambientes, mas o caminho é seguirmos juntos, e nunca
separados. É um processo que demora, mas é necessário. Estando juntos, todos
aprendemos muito mais.”
Mario
Paulo Greggio, colega de trabalho de Danilo na Mais Diferenças, tem Síndrome de
Asperger e também cursa faculdade: ele está no segundo ano de Ciências da
Computação. Durante o ensino fundamental, ele passou por duas escolas de
educação especial e não teve uma boa experiência: “não ensinavam muita coisa e
se preocupavam apenas em analisar o comportamento dos alunos”.
Depois de
passar alguns anos longe da escola, Mario fez o ensino médio no formato EAD e
seguiu para a educação superior nessa mesma modalidade. Embora não precise de
nenhum apoio extra da universidade, ele aponta que é necessário melhorar a
forma como alguns dos conteúdos são apresentados na plataforma digital e
expandir o leque de recursos de acessibilidade.
Outro
passo fundamental é tornar os espaços e materiais acessíveis ao maior número de
pessoas desde o início, já na fase de planejamento. “É o conceito de Design Universal
de Aprendizagem”, explica Tomelin, da Unicesumar. “Se já temos esse olhar de
partida, saímos da lógica da adaptação e da assistência. Pensar em
acessibilidade é algo muito mais amplo – imagine, por exemplo, uma rampa de
acesso: ela é necessária para os cadeirantes, mas também para alguém que
quebrou o pé e precisa usar muletas por algum tempo.” O fato, portanto, é que
todos nós temos necessidades específicas ao longo da vida, sejam elas
temporárias ou permanentes.
Fonte: Revista Ensino Superior
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu Comentário é muito importante para nós.