Depoimento: “antes eu fazia sapato, hoje sei passar sonda”, diz mãe de Lais
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Como muitas mães, Odete Vieira da
Silva Souza, 55 anos, vai passar o próximo domingo com a filha. Mas será longe
de casa, nos Estados Unidos, onde Lais Souza se recupera de um acidente que
quase custou sua vida e a deixou numa cadeira de rodas.
Num depoimento emocionante de 40
minutos em que foi às lágrimas, Odete revela medos, questionamentos, esperanças
e afirma que não guarda mágoas do esporte nem de ninguém. Leia o depoimento:
Amor à ginástica
“Pra mim a ginástica é o esporte mais
lindo que existe. E o mais difícil, o mais complicado e o mais injusto. Sempre
gostei, mas nunca pratiquei. Eu nunca tive oportunidade. A Lais começou a fazer
ginástica aos quatro aninhos porque eu levava o irmão dela no judô num ginásio
de esportes que tem em Ribeirão Preto que se chama Cava do Bosque. Ela viu as
menininhas fazendo ginástica lá, pediu para colocar e eu a coloquei. Ela foi
muito bem.
Sempre se destacou, desde a primeira
competição ela já ganhou medalha de ouro. Sabe, na época quando ela começou não
eram medalhas, eram estrelinhas, diplomas com estrelinhas. Já no primeiro
diploma dela foi com cinco estrelinhas. Foi num ginásio em São Paulo, nos
Jardins.
Deixar uma filha sair com 11 anos de
casa realmente não é fácil, principalmente no Brasil, que não tem apoio nenhum.
Mas ela levava jeito, era uma ótima atleta, uma criança muito centrada e é o
que ela queria, o que ela gostava de fazer. Ela é apaixonada por ginástica.
Acho que fazia parte de algo que ela
realmente gostava de fazer, mas toda a vida eu questionei. Meu Deus, a minha
filha sofre muito, Senhor. Será que algum dia ela vai ter alguma recompensa por
isso? Uma recompensa de reconhecimento, sabe? Eu imaginava assim. Um dia minha
filha vai voltar pra casa. Uma menina que nunca teve um registro, uma carteira.
Uma menina que nunca trabalhou e o que ela tem? Ela não tem nada. Infelizmente
ou felizmente não conseguiu nada. Eu sempre pensei comigo que a hora em que ela
parar com a ginástica ela vai voltar para casa, fazer uma faculdade ou vai
trabalhar atrás de um balcão de shopping. Toda vida eu tive isso comigo. Sempre
me perguntei, caramba, um atleta deu sua vida pelo país, ele luta pelo país e
chega no final não ter uma aposentadoria, não ter nada?
Depois que ela foi para São Paulo a
gente passou a se ver menos do que quando ela morava em Curitiba. Meu trabalho
é difícil também. Eu não podia deixar meu serviço para ir a São Paulo. E as
condições da gente também. Não dá para ficar viajando muito, eu trabalhava numa
fábrica de sapatos. Ainda não me aposentei, deixei o trabalho para vir pra cá
(Estados Unidos). Larguei tudo, só telefonei na firma e falei “tô viajando
amanhã de manhã e não sei quando volto”.
E não conversamos mais sobre isso.
O acidente
“Eu não sei te falar em que eu me
apoiei. Isso era 11 horas da noite de uma segunda-feira. Eu estava me
preparando para ir dormir e o telefone toca. Uma doutora me disse que minha
filha tinha sofrido um acidente muito grave. Eu no momento perguntei para ela
se minha filha tinha morrido. Ela falou não, sua filha não morreu. Eu tornei a
perguntar se ela corre risco de morte. Ela falou sim, ela corre risco de morte.
Vai passar por cirurgia ainda hoje. A
gente desmonta né.
Na hora eu não conseguia lembrar o
telefone de ninguém. Aí o primeiro telefone que apertei na minha agenda foi o
do padre da minha igreja e ele também não pode me atender. Depois, como sou
separada, eu liguei para o pai dela. Sabe quando você vai caindo em si? Eu
comecei a voltar para conseguir fazer alguma coisa, mas é bem complicado. Meu
filho veio rápido, me pegou e me levou para casa do meu ex-marido. Eu dormir lá
à noite. Dormi? Não! A gente passou a noite toda acordado planejando ver o que
ia fazer.
Falei: “estou indo para São Paulo
amanhã cedo e vou ver o que consigo aprontar lá”. Foi quando a Maurren (Maggi)
ligou para a gente oferecendo ajuda. Ela falou que ia dar um jeito e disse “vem
para cá amanhã cedo que a gente vai correr atrás do seu passaporte e o visto
para você viajar”. Peguei um voo e às 14h30 estava em São Paulo. A gente conseguiu
o passaporte na terça-feira. Na quarta-feira de manhã a gente começou a correr
atrás do visto. E infelizmente a embaixada (dos EUA) de São Paulo na
quarta-feira não abre. Vai daqui, vai dali, aciona um, aciona outro, o COB. Até
o governo foi acionado, alguém do Congresso para conseguir este visto para mim.
De quarta para quinta-feira eu já embarquei. Quinta-feira eu já estava em Salt
Lake City.”
Fé em Deus
“A única informação que chegava é que
ela tinha feito a cirurgia e que os médicos disseram que ela não ia mais
conversar. Se alimentaria só por sonda. Respiraria por aparelho. Enfim, ia ser
um vegetal. E a gente ouvindo tudo isso. Só que eu falei: “meu Deus, isso não
pode ser, isso é um sonho, daqui a pouco vou acordar”. Pedi para Deus, “me ajude,
que isso seja uma fase na vida da minha filha e daqui a pouco isso tudo vai
passa”. Então a gente se agarrou, ela se agarrou, eu me agarrei a isso. Daqui a
pouco isso vai passar, eu tenho fé em Deus.
Está dando certo, meu amor. Ela está
comendo, você entendeu? Ela está respirando sozinha, cara. Só de ela estar
sentindo parte, movimentando parte do bracinho, isso daí conforta muito a
gente. Você não faz ideia a luta dessa menina para ela conseguir tudo. Ela tem
em mente que ela vai conseguir. Ela sabe das dificuldades, sabe que pode nunca
mais se mexer, mas ela tem fé em Deus. A gente tem fé em Deus. Ela tem o pé no
chão, mas a gente acredita que vai dar certo.”
Ajuda
“Tô dando carinho, conversando, brincando.
Ela nunca me viu chorar, não viu chorar nenhuma vez e ela não vai ver. Eu
choro, mas eu choro escondida… eu choro sozinha e tô chorando com você agora, é
assim. Agora vai dar certo a minha luta. Esse tratamento é muito caro, sabe. Eu
não sei como vai ser. Tem alguém que banca, tem um seguro, mas eu não sei até
quando. A gente vai precisar de muita ajuda. Você não faz ideia do quanto a
gente vai precisar de ajuda. E essa campanha que fizeram aí no Brasil realmente
não deu certo.
Eu não sei como as pessoas estão vendo
isso. Como ela está melhorando as pessoas acham que ela não precisa de ajuda.
Mas é tudo muito caro, você não faz ideia. Nós não podemos voltar para o
Brasil. Tá todo mundo lutando aqui, vão abrir uma fundação para ver se arrecada
dinheiro para poder pagar. Eu não sei te explicar exatamente como que é, até
quando. Porque o Bradesco que tá cuidando de tudo e sinceramente não sei
explicar para você. Não sei até quando porque realmente é muito dinheiro.
Aqui no hospital tem uma igreja. Ultimamente
eu entro e falo. Não consigo nem rezar mais de tanto que peço para Deus pela
minha filha. Eu tô muito forte, Deus tá dando força para gente. A única coisa é
a preocupação. Eu fazia sapato, hoje até sonda eu aprendi a passar. Virei
enfermeira, então é mais ou menos por aí.”
O futuro
“Eu não tô imaginando ainda (o
futuro). Eu tô vivendo cada dia mais um dia. Eu tô vivendo o hoje, e o amanhã
Deus proverá. Ela fala: “mãe, eu tô com
vontade de fazer xixi” porque a gente passa a sonda de seis em seis horas.
Ultimamente ela tá pedindo para fazer antes. Porque a pessoa se sente mal.
Imagina você ali fazer xixi na roupa. É a segunda vez que eu uso fralda nela
(risos). É essa minha sensação. Tenho comigo que tô cuidando de um bebê e daqui
a pouco ele vai andar. E vai ser isso aí, meu amor. Eu tô cuidando dela e aos
pouquinhos ela tá começando a se movimentar. E vai ter hora que ela vai andar.
Mas eu tô preparada (para o fracasso).
Por isso que falo uma dia mais um dia. Eu acho que ela está se preparando porque
inclusive já teve médico que comentou que os médicos daqui estavam enganando
ela. Dando esperanças. Isso nunca aconteceu, ninguém nunca deu esperança a ela.
Toda a vida os médicos foram taxativos. Eles nunca enganaram ela, toda vida
falaram a verdade. É a força dela, é a vontade dela e vai dar certo. Porque a
medula dela não rompeu, a medula dela amassou. A gente tem esperança que isso
uma hora, um dia, vai sarar e vai voltar.”
Medo
“Eu não mudaria nada não. O que tem
que ser tá escrito. Não tenho raiva, não tenho mágoa de nada e nem de ninguém.
Acidentes acontecem. Infelizmente não tem como prever. Você pode estar
atravessando a rua, torcer o pé, bater a cabeça e morrer de traumatismo
craniano. Não tenho mágoa, faria tudo da mesma forma.
Tenho medo de não reconhecerem. Até
agora tá tudo certo, tudo muito bem, estamos tendo ajuda. Tenho medo de mais
para frente uma hora cair no esquecimento. Infelizmente no nosso país cai muito
no esquecimento. Imagino que minha filha voltando para o Brasil vai viver do
quê? Ela não tem aposentadoria, ela não tem um nada. Ela tem a mim, o pai dela
e o irmão. A gente é pobre, a gente é humilde. Eu não sei como eu vou
conseguir. Eu trabalho… trabalhava para me sustentar. Eu não sei, eu voltando
para minha casa, com a minha filha, sem ajuda eu não sei como vou conseguir
cuidar dela com mil reais que era o que eu ganhava.”
Fonte: Uol e Ser Lesado
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