Mulheres com deficiência física falam das delícias e desafios da maternidade
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Margarida e o filho Raphael, que sempre adorou a carona na cadeira de rodas |
Margarida tem muitas dificuldades para
conseguir táxis e não consegue frequentar as reuniões de pais no colégio de
Raphael. Fernanda já foi questionada sobre o motivo de ainda não ter se
aposentado por invalidez. Tatiana demorou, mas se acostumou e agora
ressignifica os olhares condolentes. Quando você estiver lendo essa reportagem,
todo o otimismo de mercado, as expectativas para o aumento de vendas e os
prospectos de faturamento já serão notícias datadas. O Dia das Mães já bate à
porta. E diferentemente das flores de supermercado – clássico presente dos atrasados
e distraídos –, o que nunca envelhece são as homenagens. As mulheres que o
Pampulha homenageia nesta edição têm em comum muito além do fato de possuírem
fatores limitantes de locomoção: são mães. Elas superam várias vezes ao dia a
descrença, o preconceito, a falta de infra-estrutura da cidade e a labuta árdua
e encantadora que é educar uma criança.
Por mais que a discriminação já
devesse ser flor murcha há tempos, ela ainda desabrocha. Mesmo num país com
mais de 13 milhões de deficientes físicos (dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), estranhamento e mitos rondam duplamente quando a
questão é maternidade. Pouquíssimo abordado, o tema causa desconforto até entre
a classe médica, que muitas vezes desaconselha erroneamente a gravidez para
mulheres em cadeiras de rodas. Entre a sociedade, também é quase esquecido o
fato de que a mulher portadora de deficiência continua fértil e totalmente
capaz de levar uma vida sexual ativa, como se a limitação motora representasse
necessariamente uma disfunção sexual.
“O que eu percebo é que existe muita
falta de informação”, conta a servidora pública Fernanda Maciel, 34, que, no
Dia das Mães do ano passado, recebeu de presente o pequeno Tomás. “Alguns
termos guardam muitos significados. Já me perguntaram por que eu não me
aposentei por invalidez. Nós somos ensinados a pensar que os deficientes não
deveriam viver igual a todo mundo e isso nutriu o preconceito enorme que
existe. Muitas vezes a muleta salta aos olhos antes de mim, mas a deficiência é
apenas mais uma das minhas características. Antes de tudo, eu sou mulher”,
explica Fernanda.
A propósito do preconceito contido na
pergunta e no termo, Fernanda retrucou afirmando que nunca deixou de ser
válida, a despeito do que as suas bengalas canadenses possam dar a entender aos
mais desavisados. Ela precisa do apoio desde os 21 anos, por conta de uma lesão
medular que provocou redução de força e sensibilidade nos membros inferiores, e
não esconde o medo que precedeu a superação. “Durante muito tempo, duvidei que
fosse possível engravidar e segurar meu filho no colo por causa da muleta. Mas
logo descobri que a maternidade é mais que isso – tem outras possibilidades de
contato que não as tradicionalmente conhecidas. Sempre quis passar pela
experiência de ser mãe, mas na hora foi uma aposta – tive que adaptar tudo
dentro de casa e até dentro do contexto familiar. Fiz tudo pra que eu tivesse a
maior autonomia possível. Prefiro fazer sozinha, mas em alguns momentos não
consigo. Fico feliz, porque até quem não tem deficiência tem seus limites”.
Diferentes iguais
Elas trocam fraldas, dão banho, bronca
e carinho, amamentam, levam e buscam na escola. Todo dia elas fazem tudo sempre
igual, e querem ser vistas como semelhantes – mas para tanto precisam de
reconhecimento. Belo Horizonte não possui nenhum centro de referência para a
mulher com deficiência e é apenas a quinta capital em ruas adaptadas para os
usuários de cadeiras de rodas: menos de 10% das vias possuem rampas. “Aqui onde
estou morando, por exemplo, não consigo ir ao supermercado”, conta a servidora
do Judiciário Federal Margarida Lages, moradora da Vila da Serra. “Muito morro
complica. Tive que aprender a dirigir, mas ainda existe a grande dificuldade
que é colocar e tirar a cadeira do carro”, explica Margarida, 47, que desde 97
pilota uma cadeira motorizada, em decorrência da atrofia muscular espinhal –
doença degenerativa congênita que atinge toda a sua parte neurotransmissora e
prejudica, principalmente, os movimentos abaixo da cintura.
“Andar na rua é bem difícil: os
passeios ainda não são todos adaptados, existem muitos degraus e calçadas
esburacadas. Não existem muitos táxis acessíveis e o transporte público não
funciona bem: são poucos ônibus com elevador e muitos não funcionam, ainda mais
quando eles param em locais inclinados. Esses dias desmarquei uma consulta do
meu filho porque o hospital não tinha acesso. Nem a escola dele tem rampas de
acesso. Quero ser uma mãe mais participativa e não consigo”, lamenta Margarida
sobre o colégio em que Raphael, 13, estuda por estar mais perto de casa.
“As dificuldades de acessibilidade são
inúmeras”, concorda Fernanda. “Onde vou sempre procuro instâncias adequadas
para tornar o ambiente possível e acessível. Muitos lugares se esquecem da
diversidade e da minoria”, comenta Fernanda, que trocaria toda compaixão por
melhores condições. “Não precisamos de pena, nem que nos vitimizem nem que nos
desvalorizem. A deficiência não muda quase nada em minha vida, ela só me limita
fisicamente. Vivo a maternidade da mesma maneira que todas as mulheres vivem.
Acho até bacana que a criança filha de mãe com deficiência vai mais tarde lidar
com a diferença de forma muito natural, que é a forma ideal que a sociedade
deveria nos enxergar. Nós passamos por tudo que todo mundo passa, igualzinho”.
Determinadas, independentes e incansáveis,
essas mães compartilham, acima de tudo, a vontade de que a vida pare de ser
reduzida à deficiência.
“Eu nunca fui dependente. É claro que
existem frustrações e desafios, mas quem não tem? O sentimento de ter a
responsabilidade sobre o bem-estar de alguém é muito bacana e compensa tudo. A
cumplicidade que nós construimos também ajuda muito. Outras mães sempre se
impressionaram com o modo como ele me obedecia só com o olhar”, comenta
Margarida, solteira, que contou com ajuda de empregadas domésticas para criar
Raphael até que ele fizesse 10 anos. “Elas ajudavam com a casa e eu cuidava do
meu filho. Para a minha surpresa e de todo mundo, eu dei conta de tudo. Ele
adorava a cadeira de rodas e até dormia com o balanço. Sempre adorou a carona”,
brinca a mãe, que batalhou por Raphael antes mesmo da concepção em luta travada
com seus ovários policísticos. “Foi difícil e a preparação de tudo deu
trabalho, mas hoje não imagino mais a minha vida sem esse serzinho”.
“Tem que olhar no olho”
“Me considero uma mãe que se
transforma e se descobre todos os dias. Sou muito ligada, muito dinâmica, muito
eu e antes me preocupava onde caberia um filho nesse caminho. Mas sempre quis
ter um pedacinho de mim. Já tinha um livro e queria plantar a árvore na
companhia do meu filho. Antes que passasse a oportunidade e o desejo,
engravidei”, conta a paulista Tatiana Rolim, que a cada par de minutos pede
licença da entrevista para trocar fraldas ou retribuir beijos.
Ela é mãe de Maria Eduarda, de 3 anos
e meio, psicóloga e autora dos livros “Meu Andar Sobre Rodas” (2008) e “Maria
de Rodas – Delícias e Desafios na Maternidade de Mulheres Cadeirantes”. Sua
terceira publicação já está a caminho, lançando luz sobre direitos dos
deficientes físicos no mercado de trabalho. Embaixadora da inclusão, Tatiana
roda o Brasil com palestras que comentam sobre o Seguro DPVAT, que indeniza
feridos em acidentes de trânsito e sobre outras situações que podem prevenir
complicações em gestantes com deficiências.
Entre o acidente que a privou de andar
e a gravidez, no entanto, Tatiana também teve um longo percurso de aceitação e
adaptação. “Qualquer olhar me doía, eu só percebia dó. Depois fui me
acostumando e me redescobrindo, até que achei um olhar de paixão e recomecei
tudo. Vi que, de novo, eu podia tudo”, lembra, sobre o momento quando conheceu
o pai de sua filha, hoje, seu ex-marido.
Em comum entre Tatiana e Margarida
Lages (a mãe do pequeno Raphael) há, ainda, o fato de criarem as crianças
sozinhas. Elas dão olé em todas as expectativas e atropelam quem duvida. “O que
eu menos queria era que a minha filha tivesse um pai ausente. Mas a nossa luta
é pra que ninguém duvide do que somos capazes. A gente quer contribuir pra que
as pessoas acreditem, apostem e invistam na possibilidade de felicidade. Tive a
sorte que desde cedinho a Maria Eduarda já entendia os meus olhares e comandos
de voz. Olhar no olho é fundamental”, desabafa Tatiana, enquanto Margarida
comenta que a ausência do parceiro foi uma questão que ela sempre tirou de
letra. “Eu trabalho em casa, então sempre pude dar toda a assistência que o
Raphael precisa. Sem ninguém é muito difícil, mas eu tinha as meninas que me
ajudavam em casa e confiava muito em mim mesma: sempre fiz tudo normalmente.
Desde pequeno, ele sempre me entendeu e obedeceu, mesmo que de longe, só
trocando olhares. Agora que ele já está maior, nós já até fizemos um cruzeiro
juntos, só nós dois”, conta a funcionária pública.
E questionadas sobre o maior presente
que poderiam ganhar neste domingo, as mães são novamente unânimes. Margarida
ataca de coruja e defende que Raphael já é a coisa mais fofa que existe e
Tatiana conta sobre os momentos impagáveis. “Tô aqui conversando com você e do
nada ganho um beijo. Ela passou, beijou e soltou ‘eu te amo’. Agora ela está
ali sentada desenhando coisas ininteligíveis e lindas e inventando uma música.
No fim, isso é o que importa”.
Fonte: Pampulha e Blog Turismo Adaptado
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