Estudo usa realidade virtual para testar interface cérebro-mente em paciente tetraplégico
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Por:
Roberto Lent
Um dos
grandes desenvolvimentos possíveis das neurotecnologias é a criação de
interfaces entre o cérebro e a mente. Na teoria, isso quer dizer que, se
conseguirmos registrar em um computador alguma representação da atividade
neuronal relacionada a uma função específica, teoricamente seria possível
utilizar essa representação para realizar a mesma função sob comando do
computador. Essa possibilidade abre alternativas terapêuticas enormes para o
tratamento de pacientes com deficiências neurológicas, principalmente aqueles
que não podem se comunicar ou se locomover.
Recentemente,
os cinemas apresentaram o filme O escafandro e a borboleta, inspirado no livro
homônimo do jornalista francês Jean-Dominique Bauby, que já mencionei nesta
coluna.
O jornalista sofreu um acidente vascular encefálico (um “derrame”, como
é popularmente conhecido) que desconectou as regiões mais baixas do seu cérebro
daquelas regiões superiores que realizam o controle dos movimentos.
Ele ficou,
então, completamente paralisado de uma hora para a outra, portador do que os
médicos chamam de síndrome de encarceramento: incapaz de mover um músculo,
comunicação interpessoal zero, embora se mantivesse absolutamente lúcido. Com
muita tenacidade e sofrimento, comunicava-se por meio de piscadelas de um dos
olhos – o único movimento que havia subsistido – com uma enfermeira a quem
“ditou”, letra a letra, o seu livro, depois transformado em filme.
Bauby e os
pacientes tetraplégicos em geral seriam candidatos a utilizar as neuropróteses
baseadas em interfaces cérebro-mente, se elas estivessem já ao alcance de uso.
Assim, utilizariam seu próprio pensamento, intacto, para comunicar-se e para
mover-se.
As
interfaces cérebro-mente
O problema
é que o registro da atividade neuronal nem sempre é simples. Uma primeira
possibilidade – a mais invasiva – consiste em abrir o crânio do paciente por
meio de uma neurocirurgia e implantar chips com microeletrodos em regiões
estratégicas do cérebro para captar a atividade neuronal de centenas ou
milhares de células nervosas, durante o desempenho de alguma função.
Tal
estratégia tem sido explorada em macacos com crescente sucesso, e mostra-se
capaz de comandar braços robóticos que realizam movimentos até bastante
sofisticados, como os atos de pegar um pedaço de alimento e levá-lo à boca. Os
pesquisadores, nesse caso, compilam a atividade de centenas de neurônios
envolvidos com os comandos para contrair com a combinação certa, a força
adequada e a direção correta, as engrenagens do braço robótico como se fossem
os músculos do braço real (paralisado ou ausente).
Essa
alternativa é complicada e arriscada para uso em humanos, porque seria preciso
realizar uma neurocirurgia para o implante dos microeletrodos. Nem sempre isso
é possível, e haveria muitas complicações que poderiam advir da tentativa.
Outra
possibilidade seria utilizar as ondas do eletroencefalograma (EEG), que pode
ser captado através do crânio, sem expor fisicamente o cérebro. O EEG é uma
medida da atividade neuronal do cérebro, descoberto nos anos 1930 por um médico
alemão chamado Hans Berger (1873-1941), que não sabia do que se tratava
exatamente, na época. A técnica apresenta ondas de ritmos diversos, alguns mais
rápidos, outros mais lentos, que podem ser relacionadas a determinadas funções
ou estados cerebrais.
As ondas
do EEG durante o sono com sonhos, por exemplo, são diferentes daquelas
produzidas durante o sono sem sonhos: isso significa que o EEG acusa quando
estamos sonhando. Da mesma forma, a técnica acusa quando realizamos um
movimento, pois o traçado suave e relativamente lento se transforma em um ritmo
agitado relacionado às contrações musculares. Se o registro for feito bem no
topo do crânio, captaremos especificamente a atividade da região do córtex
cerebral que move o pé de uma pessoa.
O paciente
tetraplégico visualizava uma rua virtual com lojas em ambos os lados e pessoas
(avatares) que se deslocavam naturalmente. Reproduzido de Leeb e colaboradores
(2008).
Esse
indivíduo poderia ser um paciente tetraplégico, solicitado a imaginar os
movimentos de seus pés paralisados. Nesse caso, a atividade cerebral captada
pelo EEG (bastaria para isso uma touca com eletrodos de registro) refletiria os
comandos cerebrais necessários para mover os pés. Levada a um computador para
digitalização, quem sabe fosse possível conduzir a cadeira de rodas do paciente
sem a necessidade de uma terceira pessoa, utilizando apenas o pensamento do
paciente.
Ambiente
de realidade virtual
Essa
alternativa foi utilizada por um grupo de pesquisadores austríacos e alemães
chefiados por Gert Pfurtscheller e Gernot Müller-Putz, do Laboratório de
Interfaces Cérebro-Mente da Universidade Tecnológica de Graz, na Áustria. Essa
equipe estudou o desempenho de um rapaz tetraplégico de 38 anos, portador de
uma lesão medular completa na altura do pescoço e incapaz de mover-se sem uma
cadeira de rodas.
Após um
período de treinamento intensivo, o rapaz aprendia imaginar movimentos de seus
pés dentro de um ambiente virtual (uma rua fictícia) em que havia lojas, bares
à beira das duas calçadas e pessoas (avatares, como se usa no jargão da
realidade virtual). Ele aprendia a imaginar-se andando até o final da rua. Ao
se aproximar de um dos avatares, devia parar de pensar nos movimentos dos pés
para comunicar-se com eles, que lhe dirigiam a palavra dizendo “Oi” ou “Meu
nome é Maggie”. E continuar o caminho imaginário até o fim da rua virtual.
O
treinamento possibilitava que ele imaginasse seus movimentos a partir de seus
pés, e essa ação mental imaginativa ativava justamente a região do cérebro no
topo do crânio, onde se encontram os neurônios que comandam os pés. Essa
ativação mental específica aparecia no traçado do EEG, devidamente filtrado e
processado de modo apropriado.
Na
situação virtual, portanto, bastava pensar no movimento dos pés e o computador
movia o cenário como se o rapaz estivesse se deslocando na cadeira de rodas.
Uma esfera de comunicação invisível em torno de cada avatar, representada na
figura, devia fazê-lo parar de pensar no movimento, o que interrompia
automaticamente o deslocamento da cadeira de rodas.
O ambiente
virtual de uma rua fictícia era utilizado para o movimento do paciente na
cadeira de rodas (representado pela linha tracejada). Os avatares tinham em
torno de si uma esfera invisível que detectava a proximidade do paciente
(representada por linhas pontilhadas). Tudo funcionou virtualmente, mas o
objetivo é trazer o experimento para uma situação real. Reproduzido de Leeb e
colaboradores (2007).
Os
resultados são preliminares porque envolveram somente uma situação virtual
muito simples e apenas um paciente. No entanto, foram interessantes porque
mostraram a possibilidade de utilizar como interface entre o cérebro e a mente
um simples registro eletroencefalográfico que pode ser obtido por meio de uma
touca com múltiplos eletrodos.
Os
pesquisadores austríacos se preparam para aumentar a complexidade da situação
virtual, mudando a direção do movimento imaginário do paciente, criando
obstáculos inesperados (uma bola arremessada por crianças, por exemplo) e
utilizando não apenas uma rua, mas várias vias de uma cidade virtual.
Além
disso, o objetivo será transferir a situação virtual para um ambiente real e
experimentar o sistema em vários pacientes. Também será preciso levar em conta
algumas das observações do paciente. Por exemplo, ele se queixou de que, para
parar a cadeira de rodas, era preciso deixar de imaginar o movimento dos pés,
algo difícil de evitar se um simples pensamento divagante surgisse na mente a
qualquer momento.
O avanço
das neurotecnologias é espantoso e levanta expectativas enormes para todos os
que precisam de ajuda no desempenho das funções corporais controladas pelo
cérebro e das funções mentais propriamente ditas. Parece até que o futuro
chegou…
SUGESTÕES
PARA LEITURA
D. Leeb e
colaboradores (2007) Self-paced (asynchronous) BCI control of a wheelchair in
virtual environments: A case study with a tetraplegic. Computational
Intelligence and Neuroscience 2007: 79642.
C. Enzinger e colaboradores (2008) Brain motor system
function in a patient with complete spinal cord injury following extensive
brain-computer interface training. Experimental Brain Research 190:215-223.
Roberto
Lent
Professor
de Neurociência
Instituto
de Ciências Biomédicas
Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Estudo
publicado em 2008
Fonte:
Ciência Hoje
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