Beleza e deficiência não são opostos, diz criadora de agência de modelos
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Kica de
Castro trabalha com 80 modelos com deficiência em todo o país.
Demanda
cresce, mas preconceito ainda predomina, afirma ela.
Giovana
Sanchez do G1, em São Paulo
Kica de Castro em seu estúdio
(Foto: Giovana Sanchez/G1)
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"Aqui,
ninguém usa Photoshop", alerta a fotógrafa Kica de Castro para quem entra
em seu estúdio, no bairro do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. "E sou
muito grata à tecnologia HD, que mostrou que todos têm defeitos, ajudou a
reassaltar a imperfeição". Kica tem 35 anos e há 12 anos trabalha com
fotografia para deficientes. Primeiro, num centro de reabilitação, fazendo
fotos de prontuários e fichas médicas. "Era tudo muito frio e eles ficavam
inibidos de ter que ficar sem roupa e ser fotografados com uma plaquinha, como
numa prisão."
Foi então
que ela resolveu dar mais vida para a sala de fotos. "Fui na 25 de março e
comprei tudo que você pode imaginar de quinquilharia. Aí, quando os pacientes
vinham, fazia quase um editorial de moda com eles, até ficarem a vontade para a
foto médica".
Kica
percebeu que tudo mudou no seu trabalho, e os pacientes começaram a pedir books
de moda. Vendo a demanda, ela começou a pesquisar e viu que a Europa está
avançada na moda para deficientes. Após uma viagem para a Alemanha e muita
pesquisa e contatos, ela abriu, em 2007, a "agência de modelos para
profissionais com alguma deficiência" que leva seu nome. Hoje ela trabalha
com 80 modelos em quase todo o Brasil - menos no Acre e em Rondônia.
Em suas
fotos, os aparelhos ortopédicos aparecem como acessórios. "Acho que agora
as pessoas estão conseguindo enxergar que beleza e deficiência não são palavras
opostas, mas ainda existe muito preconceito", diz ela. Até hoje, ela diz
que a agência faz mais trabalhos para fora do Brasil.
Carolina Vieira, uma das modelos da agência de Kica (Foto: Kica de Castro/Divulgação) |
Para
Priscila Menucci, modelo de 91 cm e a menor atriz brasileira reconhecida pelo
Rank Brasil, trabalhar com moda foi uma mudança radical na vida. "Passei a
cuidar mais do corpo, da pele e a fazer cursos como automaquiagem". E, ao
ser questionada como se sente na passarela, ela é categórica: "com 1,90 m
de altura, me sinto um mulherão!"
Confira a
entrevista com Kica:
G1 - Como
você teve essa ideia da agência?
Kica de Castro - Na verdade foi uma coisa
muito por acaso. Sou publicitária e estava meio estressada, isso no começo de
2000. Aí, resolvi largar tudo para fazer fotografia. Comecei com os eventos
sociais e corporativos, mas a partir de 2002 recebi um convite para ser chefe
do setor de fotografia de um centro de reabilitação. E lá o foco era a deficiência
física. Fazia os prontuários médicos, artigos científicos. Era da forma mais
fria possível. Era uma sala pequena, fundo branco, e as pessoas tinham que
ficar de peças íntimas ou em alguns casos nuas. As fotos eram feitas nas quatro
posições globais (frente, costas e laterais), acompanhada de uma plaquinha do
lado com o número do prontuário. Não tinha nenhum paciente que olhasse para
aquela situação e não perguntasse 'Estou sendo fichado, é foto para presídio?'.
E eu não tinha experiência, não sabia lidar com aquilo.
Passados
os 3 meses de experiência, não sabia se ia aguentar, as pessoas não se
comunicavam comigo, algumas choravam quando iam tirar a roupa, era muito
invasivo para a autoestima do paciente. Aí tive uma conversa com uma amiga do
setor de psicologia que me disse: 'faça o seu trabalho da melhor forma possível
e tente se aproximar das pessoas'.
Aí, no dia
seguinte fui na Rua 25 de Março (via mais importante de comércio popular de São
Paulo) e com R$ 120 fiz a festa. Comprei tudo o que você pode imaginar em
quinquilharia, bugiganga, revistas masculinas e femininas de moda. Na
segunda-feira cheguei ao trabalho e fui até barrada pelo segurança de tão
grande que estava a minha sacola.
Quando os
pacientes chegavam e eu pedia para eles tiarem a roupa, dizia que era uma foto
para um editorial de moda e deixava tudo ali a disposição para eles se
enfeitarem. As fotos mantinham o mesmo padrão científico, mas as pessoas tinham
5 minutos de contato com a vaidade delas. Então eles se maquiavam, se penteavem,
se olhavam no espelho.
G1 - Eles
ficavam mais a vontade?
Kica - Ficavam. Eles passavam pela situação de
estar nu, mas não tinha mais aquele comentário de 'estou sendo fichado'. [...]
E eles iam me contando a história delas, muitos tinham o sonho de serem modelos
e eu incentivava eles a correr atrás do sonho. Para a minha surpresa eles
começaram a me pedir books particulares. Como trabalhava na instituição e o
espaço era mais acessível, eu só cobrava o preço de custo. Quando eles viam a
foto revelada, eles diziam 'nossa, mas essa sou eu sem maquiagem, sem
photoshop?'. Com essa produção, com essa luz, as pessoas ficavam motivadas.
Elas foram atrás das agências e pra minha surpresa, todas as respostas eram
negativas.
As meninas
começaram a voltar com a mesma baixa autoestima. Eu dizia: 'isso não pode
acontecer!' E elas me falavam que a única pessoa que acredita no potencial elas
era eu. Aí, em 2005, comecei a fazer uma pesquisa que me levou para Europa.
Cleonice Terra, modelo da agência de Kica com
paralisia cerebral (Foto: Kica de Castro/Divulgação)
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G1 - Eles
têm iniciativas assim?
Kica - Têm. Na Alemanha tem o concurso 'a mais
bela cadeirante'. Na França e na Inglaterra tem um reality show só para pessoas
com deficiência, que é mais inclusivo. Na Alemanha, há anúncios publicitários
para venda de aparelhos ortopédicos, diferente daqui, que é só um catálogo de
cores.
Algumas
poucas ações eram vistas aqui, mas nada na passarela, voltado pra fotografia.
Era sempre essa coisa de recepção de eventos, coisas pequenas.
G1 - E aí
você teve a ideia de trazer para o Brasil?
Kica - É. Mas tive que começar lá fora, para
poder ser reconhecida aqui dentro. Tive contato com a agência na Alemanha
justamente para fazer valer, colocar isso na cabeça do povo. Lá fiz pesquisa e
o contato se mantém até hoje.
Em 2007,
atribuí as atividades que já tinha como fotógrafa, aproveitei meu CNPJ
justamente para poder colocar como Agência de Modelos para Profissionais com
Alguma Deficiência.
G1 - E
como foram esses anos, de 2007 pra cá?
Kica - Costumo avaliar a partir de 2010. Os 3
primeiros anos foram de implantação do conceito. Ninguém sabia disso, ninguém
acreditava no potencial, então exploramos bem esse lado. A partir de 2010,
alguns resultados já foram surgindo nas passarelas, em editoriais de moda.
G1 - Vocês
fazem trabalhos fora do Brasil também?
Kica - Bastante.
G1 - Mais
do que aqui?
Kica - Sim. Principalmente as amputadas. É a
visão brasileira. O brasileiro tem essa coisa de que para ser modelo tem que
ser Gisele Bündchen, tem que ter 1,80 m, magra, olho verde e loira de preferência.
Priscila
Menucci, modelo de 91cm (Foto: Giovana
Sanchez/G1)
As modelos
plus size hoje são uma releitura do Renascimento. Pessoas com deficiência não
tiveram nenhuma referência na história da humanidade. Então você imagina, desde
a década de 1960 querer implantar pessoas com deficiência no mercado da moda e
você ser praticamente a única a falar do assunto o tempo todo... É complicado
mudar a visão. As pessoas colocam as pessoas com deficiência na passarela, mas
não na mesma proporção que as modelos contratadas. Coloca-se uma para ficar bem
na foto.
Na agência
temos 80 profissionais, mas as oportunidades ainda são poucas.
G1 - Como
é feita a seleção?
Kica - O processo seletivo é feito como um
processo convencional. Porque estamos falando de inclusão de mercado de
trabalho, de um mecado totalmente ditador. Ou seja, ou você entra na regra do
que já existe ou não dá para trabalhar com moda. O processo é feito da mesma
maneira de uma modelo convencional, a pessoa passa testes, entevistas, tem que
ter curso profissionalizante. É uma exigência básica da agência. A pessoa tem
que estar preparada para enfrentar o mercado de trabalho.
Se você
não estiver preparado para o mercado de trabalho, aqui não tem espaço para o
assistencialismo. Aqui obrigo todo mundo a ter uma primeira profissão,
justamente para poder manter a segunda profissão, que é ser modelo, porque
infelizmente ainda são poucas as modelos que vivem de modelagem. É o que falo
para as meninas: estudar e ter uma profissão que mantenha tudo.
G1 - A sua
agência se mantém só com as fotos de moda? Você abandonou a fotografia de
eventos que fazia?
Kica - Continuo. O mercado está abrindo as
portas, mas ainda não está totalmente aberto. Muito pelo contrário. As pessoas
estão começando a ver nosso trabalho, dão algumas oportunidades, mas ainda são
poucas e precisamos correr muito.
[...] As
pessoas estão vendo a inclusão na área de beleza e sensualidade de forma
diferente, estão conseguindo enxergar que se pode ser profissional, que beleza
e deficiência não são palavras opostas.
G1 - Vocês
enfeitam os aparelhos de alguma forma?
Kica - Aqui os aparelhos ortopédicos são
considerados assessórios de moda. Uma cadeira de rodas é como uma bolsa, uma
prótese é que nem um cinto, uma muleta é como um brinco, e assim por diante.
[...] Os próprios fabrincates estão investindo nisso. As cadeiras têm ficado
mais leve, com um design melhor, o que ajuda a compor o look nas fotos. A
pessoa olha e diz: 'nossa que modelo bonita. E é deficiente'. Antigamente era o
contrário: 'olha uma deficiente... e até que é bonitinha'.
Fonte: G1
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