Choques na cabeça e resgate de movimentos – como me tornei uma tetra cobaia

Compartilhe


Arquivo pessoal - Mara Gabrilli relata sua experiência


Tempos atrás, ajudei a promover um estudo em que cadeirantes foram submetidos à ausência total de contração muscular em todo o corpo. Nesse experimento, detectou-se que alguns aminoácidos, ligados ao sistema imunológico, só eram liberados mediante a contração muscular. Ou seja, a pessoa que não contrai a musculatura tem muito mais probabilidade de desenvolver infecções e ficar doente. Por aí já podemos derrubar a tese de que a eletroestimulação só tem serventia se for funcional.

Os choques provocam uma contração muscular mesmo que o percurso entre o meu cérebro e músculo ainda não consigam fazer esse caminho sozinhos. E foi por insistir na eletroestimulação, por mais de vinte anos, que consegui, há alguns anos, ter um esboço de contração no meu bíceps esquerdo, que aos poucos foi se fortalecendo e expandindo para o músculo do meu antebraço, permitindo um movimento sútil de braço, mas que fez toda a diferença na minha vida.

Tudo isso só foi possível porque a eletroestimulação me trouxe também muito preparo físico. Preparo de tônus muscular, de circulação sanguínea, de respiração, de conservação de massa óssea, força, resistência e consciência corporal. Aliás, foi esse preparo físico, que nunca abri mão de ter, que me levou, inclusive, a me tornar voluntária de pesquisas no Miami Project, maior centro de pesquisas sobre a cura de paralisias do mundo, localizado na Universidade de Miami, nos EUA.
O convite surgiu há alguns anos, em uma de minhas visitas ao local, quando fiz um exame para ver como estava a minha lesão medular, que desde o acidente sempre foi considerada completa, ou seja, quando a secção da medula é total, não restando fibras nervosas saudáveis.

Na ocasião, para minha surpresa, a médica virou e disse: “Very, very incomplete”. No ano seguinte eu já voltava ao Miami Project pilotando a minha própria cadeira de rodas com o braço esquerdo.

Eles ficaram tão impressionados com a minha recuperação de movimentos, depois de mais de duas décadas, que acabaram me chamando para ser “cobaia”.

Nesse início de ano, estou participando, pela segunda vez, de um protocolo desenvolvido lá. Dessa vez, o tratamento experimental, criado originalmente para ser realizado em três meses, foi adaptado para que eu o cumprisse em três semanas. Nele, foi usado simultaneamente as técnicas de estimulação magnética transcraniana e estimulação elétrica. Ou seja, mais uma vez, choques.

Em 2017, eu já havia participado de um protocolo parecido em que se utilizava as mesmas técnicas. Na ocasião, o objetivo era estimular os movimentos do braço esquerdo. Para isso, eu tomava 180 choques no córtex motor através de estimulação magnética, ao mesmo tempo em que tomava choques por estímulo elétrico do pescoço para cima. Ou seja, os choques eram direcionados na parte de cima e de baixo da minha lesão e acionados simultaneamente, como uma forma do estímulo elétrico potencializar o magnético. Esse caminho era feito até chegar ao meu bíceps esquerdo. Nesse protocolo a estimulação elétrica incidia apenas nos nervos periféricos.

A diferença desse protocolo de agora é que os choques são disparados diretamente no local da minha lesão, na nuca, e o objetivo é atingir o sistema nervoso central . Diferente de alcançar apenas um braço ou um grupo muscular, a ideia é chegar aos dois braços por inteiro.

Quem sabe não volto uma tetra capaz de lutar boxe?!

Regatar esse movimento do meu braço, por mais sútil que ele pareça, envolveu uma série de fatores. Mas o principal foi nunca ter aceitado uma musculatura atrofiada pelo fato de ser tetra.

Estou otimista que os resultados refletidos em meu corpo servirão de base para ajudar a estudar lesões medulares de muita gente que hoje anseia a reversão de paralisias, assim como eu.

Sei que de alguma forma, carrego em mim um pouco da luta de muitos brasileiros com deficiência e que precisam todos os dias lidar o com o dito irreversível.

Desde 1997, pouco tempo após sofrer o acidente, passei a pesquisar profissionais que estudavam a cura para paralisias e fundei uma ONG para fomentar tais estudos e ajudar as pessoas com deficiência a ter um pouco mais de qualidade de vida. De lá pra cá, vejo que o irreversível só existe na cabeça de cada um. E na minha não há espaço para isso. Ela já está bem ocupada, tomando choques e buscando o resgate de movimentos.

Compartilhe

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu Comentário é muito importante para nós.

Cursos e Eventos

Vídeos no Youtube

Unawheel - Entrega e primeiro passeio

Unawheel - Entrega e primeiro passeio
Unawheel - Entrega e primeiro passeio

Imagem 1

Imagem 1
20 anos na cadeira de rodas

Imagem 2

Imagem 2
Tetra Dirigindo? Como consegui tirar a CNH

Lives da Fê no Insta

Live com a Isabela Ribeiro

Live com a Isabela Ribeiro
Converso com a Isabela sobre Autoestima e superação

Live sobre Pessoas com deficiência: Exemplo de superação? Ou não?

Live sobre Pessoas com deficiência: Exemplo de superação? Ou não?
Converso com a Váleria Schmidt @schmidt sobre Pessoa com deficiência: Exemplo de superação? Ou não?

Live com Roberto Denardo

Live com Roberto Denardo
A pessoa com deficiência na vida pública 06/10/2020