Americana cega lança livro de receitas e estimula debate sobre cozinhar sem enxergar
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Christine Ha faz um preparo para empanar frangos na semifinal do reality show “MasterChef”, exibido no ano passado |
“Você é mesmo cega?”, pergunta o chef Gordon Ramsay, que acumulou 11
estrelas no guia “Michelin”, à americana de ascendência vietnamita Christine
Ha, 33.
O apresentador do “Masterchef”, reality show com cozinheiros amadores,
estava diante de um ceviche de
caranguejo que Christine preparara na terceira edição do programa. Um ceviche, nas palavras de Ramsay,
temido pela verborragia pouco elogiosa, “visualmente deslumbrante”.
Pois, em setembro do ano passado, ela (a única cega) desbancou
outros 17 cozinheiros e venceu o “MasterChef”, que foi ao ar nos EUA. Ainda não
há previsão para ser transmitido no Brasil.
Fazia parte do prêmio,
somado a um valor equivalente a R$ 560 mil, a publicação de um livro.
“Recipes from My Home Kitchen: Asian and American Comfort Food” (receitas de
casa: “comfort food” asiática e americana) acaba de chegar as
livrarias dos Estados Unidos.
O lançamento estimula o debate sobre o desafio que é cozinhar - cortar
ingredientes, usar o fogão, montar pratos bonitos - sem um dos sentidos.
Brasil
Para desvendar esse desafio, a reportagem entrevistou Christine Ha e
acompanhou dois deficientes visuais na cozinha, clientes da Fundação Dorina
Nowill para Cegos.
A musicoterapeuta Helena D’Angelo, 29, cozinhava quando criança e quis manter o hobby depois de perder a visão, aos 13
anos.
A delicadeza, até lentidão de movimentos, não escondem sua desenvoltura
entre panelas, facas e o fogão. “Pelo olfato, sei se o tomate no molho está
cru. E brinco que um bolo assando tem três cheiros - o mais gostoso é o dele
pronto”, diz.
COZINHA DE SENTIDOS
“Escuto as bolhas na água para saber se ela ferveu; sinto o perfume do
alho antes de ele queimar; toco a carne para saber se está crua, crestada ou ao
ponto.”
É com essa espécie de passeio pelos sentidos que Christine Ha responde à
pergunta de quais táticas desenvolveu para cozinhar sem poder enxergar.
A americana começou a se aventurar entre panelas e talheres quando ainda
enxergava e morava sozinha, durante a faculdade.
Era um modo de tentar recuperar os temperos e sabores asiáticos da mãe,
imigrante vietnamita no Texas (EUA), com mão boa para a cozinha - ela morreu
quando Christine tinha 14 anos, e não deixou receitas escritas.
Uma doença autoimune, que em 1999 a deixou cega (ela enxerga como se
houvesse uma grossa nuvem de vapor à frente), não interrompeu essa procura.
Daí, como conta à Folha, Christine valoriza tanto a “comfort food”.
Depois de surpreender os espectadores ao vencer o reality show
“MasterChef”, ela lançou no mês passado seu livro de receitas asiáticas. A
seguir, leia trechos da entrevista.
Folha – Você tinha visão perfeita
quando aprendeu a cozinhar. De que sente falta hoje?
Christine Ha – De ver os ingredientes - seu frescor, suas cores vibrantes. Há
ingredientes com os quais eu não tinha mexido até perder a visão; jamais
saberei como é trabalhar com
eles.
Quais?
O uni (ouriço-do-mar), por exemplo. Isso vale também para técnicas - eu não
estava habituada a filetar peixes.
Você apurou outros sentidos depois que ficou cega?
Agora, mais do que antes, os uso mais. Mas o mais importante é o paladar - ele
me ajuda a desvendar texturas e temperatura.
Sabores e aromas da sua infância foram
potencializados?
Eles ainda me trazem memórias de quando eu podia enxergar. E muitas vezes são
ainda mais intensos, sim.
No programa, a apresentação dos pratos é
fundamental. Como alcançar isso?
Em casa isso não importa, mas, se estou servindo outras pessoas - amigos ou os
jurados do programa -, confio na memória: posso lembrar de como cores se
parecem, o contraste entre elas; sinto as coisas com a mão e as visualizo
mentalmente.
Como você lida com os perigos da cozinha, como
facas e fogo?
Sou cautelosa, meticulosa, me mexo mais devagar. Prefiro ser lenta e segura do
que afobada e machucada.
Você achava que poderia vencer o programa, apesar
da deficiência?
Eu não pensava nisso, nem me importava. Preocupava-me mais com a jornada do que
com seu resultado. Estava lá para aprender e ser a melhor no que pudesse,
apesar de minhas limitações.
Você parece ter se especializado em “comfort food”.
Como define essa cozinha?
É a comida que dá nostalgia, que invoca emoções e faz de algo simples, como
comer, uma experiência transformadora. Eu levo minhas memórias para a cozinha.
O livro é minha maneira de dividir esse meu mundo com os outros.
RECIPES FROM MY HOME KITCHEN
AUTORA Christine Ha
EDITORA Rodale Books
QUANTO US$ 23,99 (cerca de R$ 54), na Amazon.com (224 págs.)
Fonte: Folha de S. Paulo - http://www.deficienteciente.com.br/
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