4 pessoas com deficiência relatam a rotina nos tempos de Covid-19: 'Preciso tocar nas coisas e nas pessoas para me situar'
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Covid-19 - Pessoas com deficiência (PCD) contam os feitos da pandemia em suas rotinas. |
Impossibilitadas de seguir recomendações de proteção da OMS, pessoas com deficiência pedem que Ministério da Saúde estabeleça protocolos e as incluam no grupo de risco à Covid-19.
No último
dia 4 de abril, a profissional de marketing Ieska Tubaldini Labão faria sua
festa de aniversário de 30 anos para 70 convidados. “Eu planejava essa festa
desde os meus 28 anos", conta ela, que é cadeirante em razão da Amiotrofia
Muscular Espinhal, uma doença degenerativa, e precisa de cuidados diários.
"Mas eu a cancelei antes mesmo de começarem os decretos de quarentena.”
Com o
alto risco de se contaminar por coronavírus, Ieska está em isolamento total
desde 8 de março e suspendeu até as sessões de fisioterapia, essenciais para
pacientes com distrofias musculares.
Pessoas
com deficiência, chamadas de PcD, podem ter mais chances de se infectar pelo novo
coronavírus por terem dificuldade em seguir as orientações de proteção
individual indicadas pela Organização Mundial da
Saúde. Segundo a OMS, quanto mais limitada a locomoção e quanto
maior a necessidade de cuidado, mais exposta à Covid-19 estará a pessoa.
“Como
minha síndrome é degenerativa, quanto menos eu movimentar meu corpo, mais
rápido ele para e perde os movimentos”, explica Ieska. “Eu tenho sentido
bastante os efeitos desse momento e procurado me movimentar em casa, mas não é
a mesma coisa de ter a assistência da minha fisioterapeuta, que cuida de mim há
25 anos.”
A
médica Ana Lucia Langer, porta-voz da Aliança Distrofia Brasil, explica que
além da impossibilidade de se manterem afastados das pessoas por necessitarem
de cuidadores, pacientes com atrofias e distrofias musculares têm coração e
pulmão afetados. Qualquer infecção e febre nessas pessoas, segundo a médica,
“leva a uma piora da doença, aumentando a fraqueza muscular motora, cardíaca e
respiratória.”
Ieska
afirma que está acostumada a ficar mais de uma semana sem sair. “O isolamento é
a realidade de muitos com deficiência por causa da falta de acessibilidade.
Estou ok com o isolamento social neste momento, mas o que me angustia é estar
proibida, não poder sair nem para o meu único compromisso fora de casa [a
fisioterapia] e, principalmente, não poder receber visitas”, diz ela.
Diferente
das pessoas saudáveis, a profissional de marketing diz que o fim do seu
isolamento social não será quando a quarentena acabar. “Para quem está no grupo
de risco, o fim decretado pelo governo não vai ser junto com o resto da
população. Talvez eu só possa sair com segurança de novo quando desenvolverem a
vacina contra o coronavírus.”
A
comemoração dos 30 anos de Ieska foi adiada para abril de 2021, data em que ela
espera que a “vida tenha voltado ao normal.”
Cartilha
O
governo lançou uma cartilha em março com informações para pessoas com
deficiência sobre a pandemia de coronavírus. O documento não considera todas as
PcD como grupo de risco ao coronavírus, mas somente as que tenham algum dos
fatores associados:
- Restrições respiratórias
- Dificuldades nos cuidados pessoais
- Condições autoimunes
- Idade acima de 60 anos
- Doenças associadas como diabetes, hipertensão arterial, doenças do coração, pulmão e rim ou doenças neurológicas
- Estiverem em tratamento de câncer
- Ela enfrenta obstáculos para adotar medidas básicas de higiene, como lavar as mãos (pias e lavatórios podem ser fisicamente inacessíveis ou a pessoa pode ter dificuldade de esfregar as mãos adequadamente)
- Muitos não podem manter o distanciamento social por necessitarem de apoio. Residem em instituições de saúde, residências terapêuticas e inclusivas etc.
- Muitos têm problemas de saúde preexistentes relacionados à função respiratória e do sistema imune, assim como doenças cardíacas ou diabetes
- Os que precisam de tecnologias assistivas de locomoção como bengalas, andadores, muletas e cadeira de rodas, estão mais expostos a superfícies que podem estar contaminadas
- PcD podem ter dificuldade de acesso a informação sem recursos como audiodescrição, legendas e conteúdo em libras
- Campanhas governamentais contra a Covid-19 e informações oficiais sobre a pandemia são pouco acessíveis às PcD
Para
a conselheira, é preciso que o Ministério da Saúde estabeleça protocolos de
atendimento e apoio às PcD frente à Covid-19. “Na necessidade de definir
prioridade na distribuição de leitos de UTI em face da insuficiência de
recursos, é preciso assegurar que pessoas com deficiência não sejam preteridas
com base em sua deficiência”, alerta.
Procurado
pelo G1, o Ministério da Saúde informou que “não tem este nível de detalhamento
dos casos confirmados e óbitos por Covid-19”, disse sua assessoria. Questionado
sobre a existência de protocolos de atendimento à população PcD, a pasta não se
pronunciou.
O G1 ouviu pessoas com diversos tipos de
deficiência. Todas relataram que as principais preocupações neste momento são
com a suspensão dos serviços básicos de saúde, como fisioterapia, e o medo de
seus cuidadores adoecerem. Veja abaixo:
As pessoas, por conta dessa orientação de manter
distância física, não estão mais oferecendo ajuda” —
Fernanda Shcolnik
A professora
Fernanda Shcolnik, de 37 anos, tem baixa visão, um tipo de deficiência visual
severa. Ela não tem doenças respiratórias nem condições autoimune, mas precisa
tocar nas coisas e da ajuda das pessoas para executar tarefas no dia a dia.
“Quando faço uma tarefa sozinha, eu preciso tocar nas coisas. Encostar nelas é
a maneira que faço para me situar nos ambientes”, diz.
A
professora caminha com a ajuda de uma bengala e, em ocasiões como descer escada
ou atravessar a rua, precisa de ajuda. “Além de ter que tocar as coisas, eu
preciso tocar as pessoas em certos momentos da minha rotina.”
Depois
de mais de um mês sem sair de casa por causa do isolamento social, Fernanda
precisou sair na quinta-feira (23).
“Foi
muito difícil me controlar na rua. Eu enxergo por meio do tato. Não poder tocar
nas coisas ao meu redor vai contra o meu instinto natural”, diz a professora,
acrescentando que é difícil para quem tem deficiência visual se manter mais de
um metro longe das pessoas.
Porém,
o mais desafiador para Fernanda neste momento é receber ajuda quando precisa
sair do isolamento.
“Por
causa da pandemia, se a gente tem que sair sozinho, não tem mais como pedir
ajuda para alguém, né? Muitas vezes a gente precisa de ajuda para chegar até
algum lugar, e as pessoas, por conta dessa orientação de manter distância
física, não estão mais oferecendo ajuda", relata a professora com
deficiência visual.
Esperei quatro horas sentada em uma salinha sem
estrutura. Senti muitas dores
—
Ewelin Monica Canizares
A
química Ewelin Monica Canizares, de 54 anos, tem dificuldade de andar por causa
de uma neuropatia, doença que afeta os nervos. “Além da dor, a doença me causou
perda de força nos membros, dificuldades de coordenação motora, perda de
equilíbrio, limitação de visão. Eu ando de bengala e uso sapatos especiais.”
Ela também tem doenças respiratórias que a colocam no grupo de risco à
Covid-19.
Apesar
da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) determinar que PcD tem prioridade no acesso
a serviços de saúde, Ewelin não recebeu atendimento prioritário nas duas vezes
em que procurou o hospital com sintomas de coronavírus.
“Na
primeira vez, falaram que faziam teste somente em quem tinha sintoma grave e me
mandaram de volta para casa”, conta a química. Ela ficou três semanas isolada
no seu quarto. No dia 22 de abril, seu médico pneumologista orientou que ela
procurasse o hospital de novo.
“Quando
cheguei ao pronto-socorro da Santa Casa, só tinha uma médica atendendo. Não
recebi atendimento prioritário, era por ordem de chegada. Esperei quatro horas
sentada em uma salinha sem estrutura. Senti muitas dores na perna e nas costas.
A médica do plantão estava sobrecarregada”, diz Ewelin.
Após
a espera, Ewelin foi internada por cinco dias e ficou isolada em um quarto com
banheiro acessível a PCD. “É o certo, tem que ter espaços adaptados, porque a
gente não quer ficar chamando, pedindo ajuda das pessoas a toda hora.”
O G1 perguntou ao Ministério da Saúde se está sendo
garantido atendimento e atenção especial às pessoas com deficiências severas
internadas por coronavírus, mas não obteve resposta.
Eu confio que minhas cuidadoras estejam cumprindo
as orientações de isolamento social —
Mila Correia de Oliveira
Em
março, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou o documento “Quem protege
as pessoas com deficiência?”. O texto explica que “medidas de contenção, como
distanciamento social e isolamento pessoal, podem ser impossíveis para quem
precisa de apoio para comer, se vestir ou tomar banho.”
Este
é o caso da consultora Mila Correia de Oliveira, de 32 anos. Como a consultora
de marketing Ieska, ela tem a doença degenerativa Amiotrofia Muscular Espinhal
e é cadeirante.
“Eu
preciso das pessoas para fazer as transferências para cadeira, cama, banheiro
etc. Preciso que me deem banho, troquem minha roupa, cozinhem e coloquem minha
comida no prato e cuidem da minha casa, já que eu mesma não posso executar os
serviços domésticos”, afirma a consultora, que tem duas cuidadoras e uma
empregada doméstica.
Ana
Lucia Langer, da Aliança Distrofia Brasil, recomenda que cuidadores de pessoas
com deficiência que tenham doenças raras durmam na casa do paciente durante
esse período. “Já profissionais da saúde que realizam visitas domiciliar a esse
paciente devem usar os equipamentos de proteção individual”, complementa.
Mila
explica que suas cuidadores moram com os filhos e não é possível trazê-las para
sua casa. “Quando você depende do cuidado de outra pessoa, você precisa que ela
se cuide para poder cuidar de você. Eu confio que minhas cuidadoras estejam
cumprindo as orientações de isolamento social, e não só elas, mas toda a
família que mora com elas.”
A
solução foi buscar e levar as cuidadoras para suas casas, a fim de que elas não
andem de transporte público. “Mas como o custo é alto, não isso faço todo dia”,
diz Mila.
Langer
explica que as famílias de PCD com doenças raras devem “estar preparadas para
caso o cuidador precise se afastar porque adoeceu e precisou ficar em
quarentena.”
O G1 perguntou ao Ministério da Saúde se o sistema de
saúde fornecerá acolhimento às pessoas com deficiência nos casos em que seus
cuidadores forem internados ou colocados em isolamento em razão da Covid-19,
mas a pasta não respondeu.
São
orientações gerais do Ministério da Saúde contra a Covid-19 aos PcD:
- Tanto os meios de locomoção como bengalas, muletas e andadores, assim como o aro de impulsão de cadeira de rodas, as órteses e próteses devem ser desinfetadas com água e sabão ou álcool 70% constantemente.
- Ao receber ajuda, pessoas com deficiência visual devem tocar o ombro da pessoa que os guiará, e jamais segurar mão ou cotovelo, já que a recomendação é espirrar ou tossir no meio do braço
- Para os que se comunicam pela Língua Brasileira de Sinais, Libras, a orientação é não tocar o rosto enquanto conversam
- Surdocegos que se comunicam usando contato físico, como a Libras Tátil, devem higienizar as mãos e antebraços quando forem se comunicar
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