Mulheres com deficiência revelam o que esperam de um futuro inclusivo
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Mesmo com leis
específicas para pessoas com deficiência, o Brasil ainda é um país com
pouquíssima acessibilidade e o preconceito é diário
Alessandra Martins no Instituto Moreira Sales (AF Rodrigues/CLAUDIA) |
Mariana Torquato nunca foi apenas Mariana. Desde
pequena, sempre que seu nome era citado, ele vinha acompanhado de um comentário
cruel relacionado com a sua deficiência. “Via as pessoas apontando
para mim; algumas perguntavam o que tinha acontecido”, conta a criadora do Vai
uma Mãozinha Aí?, o maior canal sobre deficiência do YouTube no Brasil. A
catarinense de 27 anos nasceu sem o antebraço esquerdo e cresceu sabendo que a
sociedade não estava preparada para conviver com pessoas com deficiência
(PcDs). Mariana faz parte dos mais de 25 milhões de brasileiras que possuem
algum tipo de deficiência, seja física ou intelectual, segundo o Censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Apesar do elevado
índice, as iniciativas governamentais voltadas para essa parcela da população
ainda são escassas. E mesmo as principais legislações em vigor – a Lei
de Inclusão, de 2015, que assegura o exercício dos direitos das pessoas com
deficiência, e a Lei de Cotas, de 1991, que exige que empresas com
mais de 100 funcionários tenham vagas destinadas a essas pessoas – muitas vezes
são desrespeitadas. “Há quem ache as cotas um absurdo, mas elas se mostram
extremamente necessárias em um país como o nosso, que ainda não inseriu
socialmente as PcDs. É o único modo de garantir que as empresas percebam que
nós existimos”, afirma Carolina Ignarra, sócia-fundadora da Talento
Incluir, consultoria especializada em inclusão no mercado de trabalho. Ela
abriu o negócio depois de, em 2001, sofrer um acidente, que a deixou
paraplégica. Na época, mesmo com um currículo excelente, Carolina só era
convocada para vagas que não tinham relação com sua formação acadêmica, de
educadora física. Percebeu, então, que, para as corporações, tratava-se apenas
de uma tentativa de preencher as vagas obrigatórias; elas não estavam
preocupadas com as pessoas. “As mulheres são vistas ainda como mais incapazes,
e existe a questão da maternidade, que, para algumas companhias, é uma pedra no
sapato”, revela Rosemeire Andrade, gerente de inclusão do Núcleo
de Aprendizagem Profissional e Assistência Social, que capacita grupos
minoritários para o retorno ao mercado de trabalho em São Paulo.
Longe das escolas
Em parte, a dificuldade
de conseguir um emprego é resultado do pouco acesso ao sistema de ensino. As
estatísticas entregam: 60% das PcDs brasileiras não completaram o ensino
fundamental e apenas 0,5% delas está no mercado de trabalho. As barreiras
incluem falta de acessibilidade física e também intelectual, já que boa parte
das instituições de ensino não oferece auxílio e monitorias especializadas a
pessoas com deficiência. E não é um problema exclusivo do sistema público. A
estudante paulista de jornalismo Ana Clara Moniz, 21 anos, que tem
atrofia muscular espinhal tipo 2, enfrentou obstáculos mesmo tendo frequentado
escolas particulares durante toda a vida. “Só depois que entrei no colégio
percebi, de fato, o que significava ter uma deficiência. As escolas não queriam
me aceitar quando descobriam que eu era PcD”, lembra. Após uma longa busca dos
pais, Ana Clara finalmente ingressou na educação infantil e, apesar da falta de
experiência da instituição, nunca teve problemas. “Mas sei que sou
privilegiada. Isso não é a realidade para a maioria”, completa. Na faculdade, a
história é outra. Ela enfrenta certa resistência nos pedidos de mudanças do
espaço. “É complicado conseguir chegar às salas em cadeira de rodas, e alguns
professores não são muito compreensivos. Quando está chovendo, é difícil passar
pelas rampas descobertas. Uma vez reclamei que estava tomando chuva e ouvi:
‘Pelo menos em Campinas não chove muito’”, revela.
Após o diagnóstico
de AME, os médicos acreditavam que Ana Clara Moniz não viveria mais do que dois
anos. Hoje, ela cursa jornalismo
A carioca Nathalia
Santos, 27 anos, se depara com empecilhos semelhantes. Até a universidade,
dependeu dos sistemas públicos de ensino e saúde. Só aos 12 anos ela conseguiu
o diagnóstico correto de sua condição, retinose pigmentar, três anos antes de
ficar completamente cega. Como até então os médicos diziam que Nathalia tinha
apenas astigmatismo e miopia, ela não conseguia solicitar os materiais
escolares adaptados para PcD. “Mesmo assim, graças à boa vontade dos
professores, aprendi a escrever. A questão sempre foi a falta de estrutura”,
explica. Quando ingressou na faculdade, uma instituição privada que lhe
ofereceu uma bolsa integral, descobriu que o prédio não tinha acesso algum. A
escola ouviu os pedidos da aluna e corrigiu alguns dos problemas.
Busca por prazer
Nathalia soube há poucas
semanas que está grávida. No início, foi um choque. “Conhecemos mães de
crianças com deficiência, mas quantas mães com deficiência a gente vê? São
pouquíssimas. Nós não somos vistas como pessoas desejadas”, afirma. Além de
terem a sexualidade e o prazer completamente ignorados, as mulheres com
deficiência estão muito mais sujeitas a sofrer todo tipo de violência sexual –
o risco é três vezes maior para elas do que para as demais mulheres, de acordo
com o primeiro relatório da ONU sobre PcDs, lançado em dezembro de 2018.
Fatos como esses causam
impacto direto sobre a autoestima das mulheres, sem contar que a falta de
informação também influencia no autocuidado. “Como elas são invisibilizadas, é
extremamente importante que estimulemos o empoderamento. Uma das formas de
conseguir isso é promover encontros entre elas para que possam trocar
experiências e se unir”, explica Aracélia Costa, secretária
executiva dos Direitos das Pessoas com Deficiência no estado de São
Paulo. A secretaria vai lançar, ainda este mês, uma programação de eventos
que terão início na capital, mas logo devem seguir para outras cidades.
Segundo a estudante
carioca de ciências sociais Alessandra Martins, 23 anos, o machismo
tem efeito potencializado para as mulheres com deficiência. “Na sociedade
patriarcal em que vivemos e nas relações heteronormativas, é raro sermos
aceitas e amadas porque, em geral, o papel social feminino sempre foi zelar
pelo homem. Aí as pessoas pensam que terão de cuidar da gente, o que não faz
sentido. A minha deficiência, por exemplo, não me causa tantas limitações. De
qualquer maneira, as relações deveriam ser sobre trocas e companheirismo”,
explica ela, que perdeu a perna após ser atropelada por um ônibus e precisou
fazer uma vaquinha online para comprar a prótese.
Não são só os homens que
viram as costas para as mulheres com deficiência. O movimento feminista também
acaba deixando de lado esse grupo. Mesmo com as inúmeras vertentes, poucas são
as lutas que o envolvem. “A verdade é que esse mundo só é fácil para uma
parcela pequena da sociedade: os homens cis héteros brancos e ricos. Quanto
mais opressões você acumula, pior é. Eu apoio o movimento e acho extremamente
importante, mas ele não me representa como mulher preta e muito menos como
mulher com deficiência”, afirma Alessandra. Mariana concorda. Segundo ela, além
de todo o estigma da fraqueza do gênero feminino, o corpo dessas mulheres não é
bem-vindo em ambientes que discutem o feminismo. “Os eventos acontecem em
lugares sem acessibilidade, intérprete de libras, audiodescrição. Parece que as
pessoas têm preguiça de nos incluir”, diz.
Um futuro nem tão
brilhante
Em novembro do ano
passado, o Ministério da Economia criou o Projeto de Lei
6.159, que determinava que as empresas poderiam optar por não contratar pessoas
com deficiência se pagassem uma multa. Isso praticamente destruía o direito ao
trabalho das PcDs e desautorizava a Lei de Cotas. O PL deveria ser votado em
até 45 dias no Congresso, mas, após inúmeros protestos, o presidente Jair
Bolsonaro retirou a urgência e o ministro Paulo Guedes garantiu
que não irá pautar mais nenhum projeto que envolva as PcDs sem ouvi-las e
considerar suas demandas anteriormente. Esse é apenas um dos exemplos de
projeto de lei que tira os direitos das pessoas com deficiência, LGBTs+,
mulheres, negros e, ainda que não tenha ido para a frente, mostra o descaso do
poder com as minorias.
Para Mariana, com o viés
do atual governo, é difícil esperar muitas mudanças positivas, mas o essencial
é investir na inserção no mercado de trabalho. Ela sugere uma campanha para
exaltar as PcDs. “A gente não quer ficar encostada no INSS, como muita gente
fala. Queremos ser produtivas e protagonistas da nossa vida”, declara. Já Ana
Clara defende a “normalização” das deficiências. “As pessoas precisam começar a
nos ver como cidadãos. Temos direitos, e eles precisam ser respeitados. Não são
favores que nos fazem”, explica.
O preconceito está em
atos e questões nos quais às vezes nem paramos para pensar – alguns,
institucionalizados. “Ano passado fui à Receita Federal e descobri que a
deficiência é considerada uma moléstia grave. Esse tipo de nomenclatura ainda é
muito comum e ofende, inferioriza. Não é algo que vai mudar de uma hora para
outra porque está enraizado, mas ações de conscientização do governo poderiam
dar início à mudança”, sugere Ana. Até lá, as atitudes para a transformação
devem partir de todos. De nós mesmas no dia a dia, para acolher e ouvir essas
mulheres, ser parceiras delas na luta por seus direitos. Das instituições
públicas e privadas, ao atender às necessidades das PcDs e garantir a real
inclusão. E de toda a sociedade, no combate aos preconceitos.
Mariana Torquato não se sente bem-vinda em eventos
feministas: “Alguns não são sequer acessíveis” (Caroline Martins/Reprodução)
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Após o diagnóstico de AME, os médicos acreditavam que Ana Clara Moniz não viveria mais do que dois anos. Hoje, ela cursa jornalismo (Arquivo Pessoal/Reprodução) |
“Temos direitos, e eles precisam ser respeitados. Não são favores que as pessoas nos fazem”, diz Ana Clara (Arquivo Pessoal/Reprodução) |
Fonte: Cláudia Abril
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