Médico cego de SP mantém consultório, atende em hospital e orienta alunos
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Endocrinologista perdeu
totalmente a visão há oito anos e é especialista em tireoide
Jairo Marques
O
endocrinologista Ricardo Ayello Guerra, que trabalha sem ajuda da visão –
Marlene Bergamo/Folhapress
SÃO PAULO - A rotina do médico endocrinologista Ricardo Ayello Guerra, 47, é
pesada como a de qualquer outro profissional de saúde. Ele atende em uma
clínica particular e também dá expediente em dois grandes
hospitais públicos de São Paulo, onde ainda orienta o trabalho de dezenas
de colegas residentes. A diferença é que o doutor Ricardo não tem a visão, é
totalmente cego.
Não há segredo nem
assistencialismo para o sucesso profissional dele. Sua jornada foi marcada pela
construção de um amplo conhecimento técnico e teórico, por adaptações básicas
em sua rotina e pela permanente preocupação em prestar um bom serviço ao
paciente.
Ricardo se
formou em medicina pela Uerj (Universidade do Estado do Rio do
Janeiro), uma das melhores do país, especializou-se em tireoide, cujos
problemas são muitas vezes detectados pelo toque do médico. Para
rotinas diárias, ele tem sempre ao seu lado um profissional de confiança
que lê os resultados de exames e resolve questões práticas.
"Durante o período
de faculdade, eu ainda tinha um pouco de visão [ele nasceu com retinose
pigmentar] e enfrentava mais dificuldades em locais com pouca luz ou para usar
instrumentos como o microscópio, pegar uma agulha. Tentava compensar estudando
muito, até seis horas por dia", afirma o médico.
Embora tenha sempre se
deparado com questionamentos sobre sua competência e habilidade, de ter
sofrido resistência e algum bullying de seus colegas, Ricardo, com apoio
familiar e gosto pela prática médica, convenceu-se de que poderia seguir em
frente na carreira.
"Ninguém conseguia
me dar uma justificativa convincente para fazer eu desistir de ser médico.
Passei num vestibular muito difícil, mas até estava disposto a abrir mão se
houvesse algo que me impedisse de continuar. Conversei com vários catedráticos
que me falaram que eu tinha, sim, condições de exercer a profissão com
adaptações, estudos, com muito aprendizado."
Em disciplinas muito
práticas como pronto-socorro ou cirurgia, cumpriu toda a parte teórica, fez
provas e foi aprovado. Em histologia -que estuda composição e função dos
tecidos vivos- tomou bomba, pois o professor exigia que ele usasse o
microscópio.
"Minha sorte foi
que esse professor mais tradicionalista se aposentou e o novo que entrou no
lugar dele aceitou e achou natural a forma que eu propus para realizar as
avaliações, por meio de fotografias 3D. Não me lembro ao certo se fiquei com 9
ou 10."
A psiquiatria foi uma
das primeiras especialidades sugeridas a Ricardo, que já tinha convicção que
poderia ser um bom médico de atendimento clínico, trabalhando em consultório.
Escolheu a endocrinologia. Fez residência médica no Hospital do
Servidor Público Estadual de São Paulo, onde, em 2002, prestou
concurso para médico endocrinologista e passou em primeiro lugar.
Ele também é concursado
no HSPM (Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo), onde ficou em
segundo lugar nas provas. Fez mestrado na Universidade Federal de São Paulo com
um trabalho já voltado aos estudos da tireoide.
Há 15 anos, a
doença do médico começou a progredir e ele passou a perder gradativamente
a capacidade de enxergar. Há oito anos ele é considerado totalmente cego.
Ricardo ainda faz reabilitação na Fundação Dorina Nowill para lidar melhor com
sua situação de forma independente.
Para a médica Daniela
Yone Veiga Iguchi Perez, colega de Ricardo no HSPM, ele é "um médico
extremamente competente, referência em conhecimento nas áreas em que atua. Um
grande exemplo para os residentes e toda a equipe. Sua deficiência visual, que
passa totalmente desapercebida no trabalho que desenvolve na assistência e no
ensino, apenas aumenta a admiração que todos temos por ele".
Duas vezes por
semana, o endocrinologista atende em um consultório particular em Atibaia (a
66Km de São Paulo), onde também moram seus dois filhos Leonardo, 12, e Camila,
10. Ele é separado por duas vezes e planeja se casar pela terceira vez em
novembro.
"Uma regra de
quando saio na rua com meus filhos é a de eles manterem sempre as mãos atadas
comigo. Eles ainda perguntam se vou voltar a enxergar e eu digo que não, o que
não é fácil, afirma Ricardo.
"Por muito tempo
achei que surgiria um tratamento milagroso para o meu caso, hoje, não vivo com
essa expectativa. Me preservo, me cuido, mas se surgir algo será lucro. A
aceitação da minha condição é um exercício diário e vai durar a minha vida
inteira. Não posso dizer que seja algo simples".
No consultório, além de
ter auxílio de programas de computadores específicos para pessoas com
deficiência visual, o médico conta com um auxiliar. Suas consultas são longas
para captar as nuances dos problemas de seus pacientes e ele não dispensa uma
boa avaliação tocando seus pacientes.
"Não tenho como
prática falar antecipadamente ao paciente sobre minha condição, pois entendo
que isso não levará nenhum benefício a ele. A pessoa chega e é atendida da
melhor maneira possível. Se ela pergunta sobre minha visão, explico. Nunca
recebi nenhuma reclamação por isso e o meu termômetro é a volta dos pacientes
ao consultório. De modo geral, elas voltam."
Em seu trabalho nos
hospitais públicos, o médico faz orientação e debate de casos a respeito
de diabetes, obesidade, tireoide entre outros com os residentes.
"O doutor Ricardo é
um homem admirável, com conhecimento geral e médico extenso e atualizado.
Bastante querido por todos os colegas e pacientes. Nos inspira diariamente, ao
demonstrar que sua deficiência não significa, de maneira alguma, uma limitação",
afirma Adriano Radin, residente de endocrinologia do HSPM.
Ricardo, porém, não
avalia que tudo seja simples e entende que há, sim, dificuldades para a
atuação de pessoas com deficiência em algumas áreas e que é necessário haver
coerência.
"Não é possível
determinar de antemão o que uma pessoa é capaz de fazer ou não. É preciso dar
chances às pessoas, ouvi-las, entendê-las e agir sem preconceito, abrindo os
espaços. Nem todo mundo terá características que atendam determinada
profissional, mas isso vale para qualquer pessoa."
Fonte: Folha de SP
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