De onde vem a força das mulheres que têm filhos especiais?
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Por Cristiane Segatto*
“Conheça a vida selvagem: tenha filhos”.
Sempre me divirto quando vejo esse adesivo colado no vidro de algum carro. Essa
frase é a mais pura verdade. A maternidade nos aproxima das fêmeas de todas as
espécies. Em nenhuma outra fase da vida percebemos tão claramente o papel
animalesco que a natureza nos reserva.Viramos leoas que se desdobram para
cuidar da cria, alimentá-la, protegê-la e – principalmente – amamentá-la.
Sim. Não importa se a mulher é uma executiva
empertigada, uma intelectual inatingível, uma operária calejada. Quando o filho
nasce, ela vira um peito. Ou melhor: dois. Nada do que a mulher fez na vida ou
ainda pretende fazer tem importância diante da função especialíssima de ser a
única fonte de alimento de um ser que acabou de chegar. Um ser que vai crescer,
ajudar a povoar o mundo e tocar em frente a grande aventura do Homo sapiens.
Quando eu amamentava a Bia (hoje uma moça de
10 anos) eu me sentia um par de peitos. Nas primeiras semanas, ela mamava a
cada hora e meia. Eu vivia para isso. Minha função nesse mundo – de manhã, de
noite, de madrugada – era amamentar. E, claro, trocar fralda, embalar, acalmar
o choro, dar banho, lavar roupa etc, etc, etc. Quando ela mamava e dormia, eu
ganhava uns 90 minutos de folga. Aí não sabia o que fazer com eles. Tomar uma
ducha? Almoçar? Colocar as pernas para cima?
Eu era tão “sem noção” que três dias antes da
Bia nascer fui à livraria comprar Guerra e Paz. Achava que a
licença-maternidade fosse uma espécie de período sabático, o momento ideal para
ler aquelas 1.349 páginas que faziam tanta falta na minha cultura geral.
Tolinha. Só fui conseguir preencher essa lacuna quando ela completou três anos.
Os primeiros tempos da maternidade foram, sem
dúvida, a fase mais selvagem da minha vida. Acordava cheia de energia, pulava
da cama e, quando a Bia deixava, tomava um banho revigorante. Às 7 horas tomava
um café da manhã reforçado enquanto assistia ao Bom Dia Brasil. Depois passava
o dia inteiro em função da cria. Decidi que nos primeiros meses não pediria ajuda
a mãe, sogra ou babá. Queria ser mãe em tempo integral. Queria ter liberdade
para errar, acertar, aprender.
Naquele inverno de 2000, meus dias eram
amamentar. Nos intervalos, corria para o tanque (que ficava no quintal, ao ar
livre) e lavava na mão, com sabão neutro, a montanha de roupinhas frágeis de
bebê. O vento gelado batia no meu rosto, mas eu tinha uma disposição para
cuidar das coisas da minha filha que só a natureza pode explicar. Meu gasto
calórico devia ser brutal. Almoçava pratos gigantescos e, ainda assim, só
emagrecia. No Spa da Selva, perdi rapidamente mais de 10 quilos.
À noite, a pilha acabava. Às 22 horas, estava
exausta. Dormia profundamente e mal conseguia abrir os olhos durante a mamada
da meia-noite. Eu e o pai da Bia desenvolvemos uma técnica animal. Eu levantava
um pouco o tronco e recostava no travesseiro. Ele segurava a Bia e acoplava a
boca dela no meu peito. Ela mamava, eu dormia. Ele ficava com ela no colo por
um tempo e depois a devolvia no berço. Nessa hora eu já estava no melhor do
sono. Às quatro da manhã, me sentia recuperada. Pronta para a maratona de mamadas
e afazeres de mais um dia. Pronta para sobreviver na selva e garantir a
sobrevivência da minha cria.
Com o tempo, as obrigações mudam. Mas a vida
selvagem dura pelo menos até a criança completar três anos. Aos poucos fui
recuperando várias liberdades que haviam sido confiscadas pela maternidade.
Hoje, com uma filha de dez anos, estou praticamente alforriada. Aproveito para
respirar profundamente. Afinal, há quem diga que a verdadeira vida selvagem
começa quando o filho chega à adolescência. Será mesmo? Que venha a nova selva,
então. No lugar da leoa incansável, ela vai encontrar a leoa maleável. Muito
mais do que era a moça que pariu aos 30 anos. A natureza é mesmo sábia.
Por tudo isso (e muito mais), sempre me
considerei uma mãe dedicada. Eu me achava uma ótima mãe até conhecer a mãe do
Idryss Jordan. Perto do que ela faz pelo filho, o que fiz pela minha é uma
espécie de passeio no parque, com direito a pipoca e algodão doce. Vida
selvagem não é a minha. É a dela. Posso ser uma mãe dedicada. Ela é mãe
coragem.
História de Idryss
Idryss Jordan tem 11 anos. É autista. Não é
um daqueles autistas que tem síndrome de Asperger (que falam, avançam nos
estudos e podem até chegar ao mestrado, como eu contei numa reportagem
publicada em ÉPOCA há dois anos). Idryss é um autista de baixo rendimento. Não
fala, usa fralda, precisa ser vestido, trocado, alimentado e cuidado 24 horas
por dia. Muitas vezes se debate e se torna agressivo.
Aos 39 anos, Keli Mello, a mãe coragem, já
precisou consertar os dentes da frente. Eles foram quebrados pelo filho. Se
você acha que a criança que tem em casa lhe dá trabalho demais, espere até
conhecer a história de Keli, uma gaúcha de Três de Maio que vive há duas
décadas em São Paulo. Não sei de onde ela tira energia para enfrentar o que
enfrenta. Por sorte (ou por destino), Keli é casada com Silvio Jerônimo de
Teves, um pai coragem.
A dedicação e o amor incondicional que esse
casal oferece ao filho fazem qualquer um se arrepender de algum dia ter dito
que criança dá trabalho demais. Quem tem um filho saudável não sabe o que é
trabalho. Keli e Silvio vivem para o filho (e para a filha Hyandra, de 5 anos,
que não tem a doença). Não podem trabalhar fora de casa. Quando o autismo do
filho se manifestou, Keli abandonou o trabalho de auxiliar de fisioterapia.
Virou artesã. No período em que Idryss está
na escola, Keli faz panos de prato e toalhas. Silvio prepara o almoço e o
jantar. Idryss não aceita comida esquentada. Se ela não for fresquinha, ele
percebe e não come. Depois de cuidar da alimentação da família, Silvio sai para
entregar as encomendas do artesanato que Keli produz. São movidos pelo amor e
acreditam que o garoto é capaz de senti-lo e retribuí-lo. “Autista não é robô.
Ele sabe amar. Se peço um beijo, Idryss me dá o rosto”, diz Keli.
Nos momentos de grande agitação – quando
Idryss se morde e pode agredir quem estiver perto – a única coisa que o acalma
é o metrô. Isso mesmo. Ele tem fixação pelo metrô. Quando não consegue
controlar o garoto, o que Keli faz? Pega o metrô na estação Tucuruvi e vai até
o Jabaquara. Depois volta até o Tucuruvi. Se precisar, vai novamente ao
Jabaquara e retorna ao Tucuruvi.
Cruza São Paulo de norte a sul (são 23
estações em cada trecho) para acalmar Idryss. Na bolsa, leva o almoço do garoto
acondicionado num pote plástico. Quando ele fica menos agitado, saltam na
estação Parada Inglesa. Keli procura duas cadeiras vazias na beira dos trilhos,
com vista privilegiada para o trem. Abre o pote, retira uma colher da bolsa e
alimenta Idryss. A plataforma do metrô é sua sala de jantar.
Conheci essa família há alguns dias quando
fazia uma reportagem sobre o trabalho da dentista Adriana Gledys Zink. As famílias dos autistas enfrentam todo tipo
de desassistência. Não encontram vagas em escolas preparadas para lidar com o
problema, não encontram atendimento médico adequado e, como é de se imaginar,
não encontrar dentistas dispostos a atender autistas. Quando essas crianças
precisam de tratamento odontológico (mesmo que seja uma simples limpeza)
costumam ser internadas num hospital para receber anestesia geral.
“Mesmo quem pode pagar, não encontra
dentistas dispostos a cuidar de autistas. Eles sequer vêem o paciente.
Simplesmente informam que não os atendem”, diz Adriana. Ela decidiu tentar
fazer diferente. Depois de se especializar em pacientes especiais na Associação
Paulista dos Cirurgiões Dentistas (APCD), frequentar reuniões de famílias
autistas e estudar os métodos de aprendizagem disponíveis, ela criou algumas
técnicas que lhe permitem se aproximar desses pacientes. Na maior parte dos
casos, ela consegue cuidar dos dentes dessas crianças (e também de adultos) no
consultório, sem anestesia geral.
O processo é longo. Exige extrema dedicação
das famílias e da dentista. Às vezes, ela precisa de quatro sessões (ou mais)
só para conseguir levar a criança até a cadeira. Quando isso não é possível e o
procedimento necessário é simples (uma limpeza, por exemplo), atende a criança
no chão. O entusiasmo de Adriana surpreendeu a família de Idryss. “Essa
dentista não existe. Acho que estou sonhando. Ela senta no chão com meu filho,
tenta de tudo e não olha no relógio para ver se a sessão acabou”, diz Keli.
Se você quiser conhecer um pouco mais sobre o
trabalho especialíssimo que Adriana e o marido (o dentista Marcelo Diniz de
Pinho) realizam, acesse o blog. Para ver Adriana em ação e conhecer Keli e
Idryss, assista a esse vídeo:
http://www.youtube.com/user/zinkpinho#p/a/u/1/ou7PVTWnfoA
Keli, Idryss e Adriana me deram uma lição de
vida. Agradeço todos os dias por ter uma profissão que me permite encontrar
gente tão especial. Saio de cada reportagem melhor do que entrei. Graças à
enorme generosidade dessa gente que confia em mim e divide tanto comigo. Muito
obrigada a todos – mães e pais coragem, entrevistados e leitores. Saio de
férias hoje. Espero voltar com as baterias recarregadas e os sentidos bem
calibrados para mais um semestre de intensa troca com vocês. Até lá.
*Repórter especial, faz parte da equipe de
ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos
e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/ (09/07/2010)
Referência: Inclusive Inclusão e Cidadania
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