'O Sarah é um monumento da saúde brasileira', diz Fernanda Montenegro

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Fernanda Montenegro proporcionou um momento memorável da história de Brasília com a apresentação do espetáculo Nelson por ele mesmo, encenado especialmente para os pacientes do Hospital Sarah em Brasília. Onde quer que esteja, Nelson deve ter chorado lágrimas de esguicho. Antes de iniciar a peça, Fernanda evocou e invocou comovidamente as figuras do marido, Fernando Torres, e do amigo Nelson Rodrigues.

Torres recebeu tratamento digno no Sarah, que lhe permitiu viver mais seis anos. Nelson foi um grande amigo de aventuras teatrais. Durante mais de um ano, ela ligava para o dramaturgo para cobrar duas peças encomendadas: Toda nudez será castigada e A serpente. Do outro lado da linha, com o maior descaro, Nelson respondia para aquela a quem chamava de “musa sereníssima”: “Nelson não está. Aqui quem está falando é o Nestor”. Fernanda não se intimidava com a desfaçatez do amigo e insistia: “Olha, Nestor, por favor, dê o recado ao Nelson de que estou esperando as peças que encomendei a ele”. E o Nestor devolvia, cínico: “Sim, pode ficar tranquila que darei o recado ao Nelson”.

E, realmente, em um momento de tanta desesperança, o espetáculo propiciou o encontro simbólico da inteligência brasileira em um monumento da saúde pública do Brasil, construído com o talento do arquiteto Lelé Filgueiras, do artista plástico Athos Bulcão e do paisagista Burle Marx. A própria existência do teatro, no coração do hospital, já é um sinal de saúde. Ao lado, o jardim da Floresta Amazônica.
Foi uma encenação especial, por todas as circunstâncias, pois Fernanda apresentou o espetáculo numa instituição de saúde de excelência em um país no qual a saúde pública tornou-se um pesadelo: “O Sarah é um monumento da saúde brasileira. Aqui, o meu marido, Fernando Torres, encenou uma peça com a participação de funcionários do Sarah. O Sarah estendeu a vida do meu marido. A minha família é muito agradecida. Por isso, gostaria de oferecer esse espetáculo aos pacientes do hospital”.

Fernanda acaba de assumir o cargo de presidente do Conselho do Hospital Sarah. A plateia dos pacientes assistiu, com a respiração tensa, a encenação de Fernanda Montenegro, sentada em uma mesa. Em sua voz, as palavras contundentes de Nelson se transformam em uma música dilacerada, mas serena.

São inúmeras as definições geniais que nascem de uma coragem desassombrada de encarar a vida como ela é e dizer o que pensa. Quando saiu do Recife para o Rio de Janeiro, a família de Nelson foi acolhida pelo poeta Olegário Mariano. Muitos anos depois, Nelson escreveria a peça Álbum de família. Uma comissão de intelectuais foi designada para avaliá-la. Olegario Mariano optou pela censura e Nelson trocou desaforos e impropérios com ele.

A peça reconstitui um acontecimento crucial para a vida e a obra do dramaturgo: a morte do irmão Roberto, talentoso desenhista, assassinado por uma mulher na redação do jornal do pai de Nelson, Mario Rodrigues. Nelson ficou impressionado com a calma da mulher diante da atrocidade do crime que cometera: “Vim para matar Mario Rodrigues ou algum dos seus filhos”. Nelson diria em suas memórias implacáveis: “A bala que matou Roberto foi também a bala que matou Mario Rodrigues de desgosto um mês depois do crime”.

Reflexão
Em face da pressão da opinião pública, a autora do assassinato foi absolvida e Nelson fez uma reflexão de enorme atualidade sobre a ausência de razoabilidade e de lucidez das massas para avaliar questões relevantes: “Toda unanimidade é burra. A partir dali, cheguei à conclusão de que a opinião pública é uma doente mental. Tive o desejo de me esconder em uma ilha deserta onde só ouvisse o grito das gaivotas”.

A vida de Nelson é uma sucessão de tragédias, que enfrentou com extraordinária coragem. Sofreu com uma tuberculose, doença quase fatal, nos anos 1940, e foi internado em Campos do Jordão (SP): “Todos os otimistas morriam. Foi neste momento que me tornei pessimista e me salvei”. Aos 51 anos, teve uma filha cega. Atacou as esquerdas, mas o filho Nelsinho Rodrigues se tornou militante da guerrilha e foi torturado —  só aceitava a liberdade se todos os amigos presos fossem soltos.

A peça é muito esclarecedora em relação à imagem de Nelson, acusado de ser reacionário e de propagar ideias imoralistas. O dramaturgo revela que, pelo contrário, ele é um moralista: “Não sou de direita e nem de esquerda”. É um novo Nelson Rodrigues que emerge da voz de Fernanda Montenegro nos convidando à grandeza neste momento de tantas baixezas. “Eu tive a coragem de viver, com toda a intensidade, o máximo de Nelson Rodrigues”, afirma a atriz, ressoando Nelson.



ENTREVISTA // Fernanda Montenegro


Como foi a relação da senhora com Nelson Rodrigues?
A relação com o Nelson vem dos tempos em que fundamos uma companhia de teatro, sob a direção de Gianni Ratto. Ele achava que os autores brasileiros precisavam ter mais espaço na programação das peças. Fui encarregada de falar com o Nelson e encomendar duas peças para ele. Eu assistia a quase todas as peças dele. Depois de muita insistência de minha parte, Nelson entregou dois textos: Toda nudez será castigada e A serpente, que não cheguei a fazer, mas que são muito encenados. Acho que ele é muito importante, porque fala da loucura do Brasil.

Encenar Nelson Rodrigues por ele mesmo no Hospital Sarah tem um simbolismo de celebrar o Brasil que dá certo?
Claro, desde que a gente não destrua o Brasil que dá certo. O problema são as obstruções. O risco são os ciclos que se sucedem, e o melhor geralmete é cortado e o pior continua crescendo e se avolumando. 

Como foi a relação do seu marido Fernando Torres com o Sarah?
Nossa família será eternamente grata ao Sarah, pois o atendimento que ele recebeu aqui estendeu a vida dele por mais seis anos. Ele montou uma peça com a participação de funcionários do Sarah. Por isso, foi uma emoção muito grande apresentar a peça do Nelson no palco do teatro do hospital para os pacientes.

O Hospital Sarah é um exemplo de investimento público bem-sucedido?
Sim, temos tanto dinheiro público mal-empregado. Então, vamos louvar quando é bem empregado. Criamos uma presença aqui e lá no Rio também. No Rio, sempre que vejo alguém na rua, com uma cadeira de rodas ou em qualquer situação semelhante, eu digo: vá ao Sarah, pois pode ser melhor atendido. É um serviço socializado. As pessoas falam do que é a surpresa de um atendimento dessa qualidade.

O que fazemos para proteger essas instituições que são como todas deveriam ser?

Esses atendimentos têm de se perpetuar. Deram certo. Não estou acenando que isso vá ocorrer. Noto apenas que o Brasil tem o hábito de destruir o que dá certo. Deus proteja isso aqui e nos proteja. Se você sair do país, dificilmente vai encontrar um atendimento melhor.

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