A vida com e sem aparelhos auditivos: um relato de experiência pessoal
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Algumas reflexões sobre a vida de quem precisa usar
aparelhos de audição – mesmo que a perda auditiva não seja das mais graves.
Menina que não presta atenção
“Já desde pequena, fiquei conhecida na família como a
criança distraída, aquela a quem os adultos diziam alguma coisa e que não
respondia. Preocupados com a questão, meus pais me levaram no médico e fiz a
primeira audiometria aos sete anos de idade – ainda a tenho guardada,
junto com todas as audiometrias que já fiz.
Com os resultados, o médico concluiu que eu era ainda
muito nova para se ter certeza de que eu tinha mesmo alguma perda auditiva e
que, dado que o gráfico mostrava uma perda leve, podia ser mesmo falta de
atenção durante os testes. Bem, até o hoje, com 30 anos de idade, o meu gráfico
de audiometria é praticamente o mesmo daquela época. Ou seja, não era falta de
atenção.
De fato, a minha perda auditiva é leve na
maior parte das frequências audíveis e moderada em apenas algumas frequências.
Não é como se eu não pudesse viver sem aparelhos – aliás, vivi sem eles até os
15 anos de idade. Sempre consegui compreender as falas das pessoas quando elas
falavam numa altura normal e não muito longe. Mas se pegar alguém acostumado a
falar mais baixo, ou talvez em uma conversa mais íntima ou confidencial… Aí eu
fico quase como a “velha surda” da Praça é Nossa.
OK, talvez não seja para tanto, mas, que os aparelhos
fazem muita falta no dia a dia, fazem. As piores situações são no trabalho, com
colegas próximos falando a pouco menos de dois metros de distância – ou falando
com a cabeça virada para o lado oposto ao dos meus ouvidos. Aí fica difícil
mesmo. Professor que fala mais baixinho em sala de aula? Peças de teatro
assistidas dos lugares reservados a estudantes pagando meia-entrada? Pode
esquecer: eu já sei que não vou entender metade se não levar os aparelhos.
Primeiro aparelho: ouvindo pela metade
Os aparelhos auditivos têm um preço absurdo
desde a década de 90, e ele não abaixa, pois novas tecnologias entram no lugar
das antigas e o custo aumenta. Em 2013, eu tive meu terceiro aparelho (um par),
e cada um custou 3 mil reais. Parcelados em 12 vezes, claro. Foi uma das compras
mais difíceis de pagar até o fim, mas uma das melhores que fiz na minha vida.
Vamos de volta ao começo. Dado esse preço, que sempre foi
absurdo, principalmente para os aparelhos do tipo microcanal (que ficam quase
totalmente dentro do ouvido e praticamente imperceptíveis para outras pessoas),
não pudemos bancar de uma vez dois aparelhos auditivos lá no fim da década de
90, quando eu tinha cerca de 15 anos. Então compramos um só: melhor um pássaro
na mão do que dois voando, não é mesmo?
Mais ou menos. Claro, era melhor ter um aparelho do que
nenhum, mas essa experiência de ouvir demais com um ouvido e de menos com outro
me deixou um tanto traumatizada e eu fico “para morrer” quando tenho que passar
por isso de novo.
Ouvindo alguns sons pela primeira vez
Aquele meu primeiro aparelho terminou não durando muito
tempo por total falta de cuidado minha, com pilha vazando dentro dele. Na
verdade, eu não o usei com muita frequência porque não consegui me adaptar a
essa situação de ouvir com um ouvido só. Então veio o meu primeiro par, uns
dois anos depois. Eu já estava prestes a tentar o vestibular e era mais
necessário do que nunca que eu entendesse tudo o que fosse dito em sala de
aula.
Então, pela primeira vez, já na adolescência, eu ouvi
alguns sons que nunca tinha ouvido antes. Por exemplo, o relógio analógico na
parede faz um barulho forte a cada passada de segundos se você está numa sala
vazia e silenciosa. A geladeira, então, nem se fala, que coisa mais barulhenta!
Sem aparelhos, eu ouço um pouco o som da geladeira, mas não em todo o seu
volume. A água começando a ferver na chaleira é outro som que eu não ouvia.
Quando você escreve a lápis no papel, o lápis faz um
barulhinho que nunca fui capaz de ouvir sozinha. Aliás, esse som do lápis foi o
que fez a minha mãe chorar, quando eu fiquei surpresa ao descobri-lo e fui
contar para ela dessa grande novidade. Era como um novo mundo de sons tivesse
se aberto para mim naquele momento. E olha que a minha perda auditiva nem pode
ser classificada como grave.
Outra experiência não tão legal
Você pode usar aparelho, mas a perda auditiva ainda
existe. Lembro-me de uma experiência marcante de procura de emprego, que exigiu
um teste de audiometria, pois era para trabalhar o dia todo ao telefone. Por
algum motivo, não fiz o teste com os aparelhos. Com o resultado, a recrutadora
disse que não podia me contratar: “É para o seu bem. Você precisa preservar a
sua audição e esse cargo a coloca em risco.”
Eu não quis saber se era para o meu bem ou não. Eu nem
queria tanto aquele emprego. Mas ser rejeitada pela perda auditiva, mesmo para
o meu bem, foi uma sensação terrível. Eu liguei chorando para a minha mãe, que
me consolou: “Você vai encontrar uma coisa melhor e uma coisa certa para você”,
ela disse. E, como toda mãe, ela estava certa.
Novos aparelhos perdidos
Quando a gente tem algo que é dado, muitas vezes não
damos tanto valor quanto quando suamos para pagá-lo. Para mim não foi diferente
com esse novo par de aparelhos. Eles duraram muitos anos, nem sei dizer ao
certo, talvez sete ou oito anos.
Mas eles tinham um grande problema: a pilha, que, quando
estava a uma hora de acabar, fazia o aparelho apitar para dentro do meu ouvido
um leve alarme a cada cinco minutos, mais ou menos. Era um som suportável: o
problema era você ter que suportar esse som a cada cinco minutos (ou menos) por
uma hora até a pilha acabar. E o pior é quando você estava na rua e não tinha
outra pilha nova em mãos porque foi sair com os amigos e levou apenas o
celular, sem bolsa.
Depois que a pilha acaba, o aparelho não emite mais som
nenhum do mundo externo e funciona como um verdadeiro tampão no ouvido. Ou
seja, eu tinha que tirar os dois aparelhos e guardar na calça, porque, com eles
no ouvido, eu não ia ouvir nada mesmo.
O resultado você já pode prever: no dia seguinte, mal
lembrei dos aparelhos, minha mãe pegou minha calça para lavar e sabe-se lá se
eles ficaram no meio do caminho da volta para casa ou foram desintegrados
dentro da máquina de lavar. Claro que eu demorei um bom tempo para contar isso
para os meus pais.
Novos aparelhos do próprio bolso
Cerca de dois anos depois desse incidente de perder os
aparelhos, eu tive que comprar um par novo, pois já era impossível trabalhar
sem eles. Quem trabalhava mais próximo de mim no dia a dia precisava sempre
falar num tom mais alto toda e qualquer coisa para eu ouvir. E eu sempre me
preocupo mais com o desconforto das pessoas nessas situações do que com o meu
próprio.
Então lá fui eu fazer nova pesquisa e cair para trás com
os altíssimos preços dos aparelhos que eu queria. Há diversos modelos e
fabricantes disponíveis no mercado, mas o preço é sempre salgado,
principalmente para os mais discretos, que são os que eu uso por questão
estética. É uma questão pessoal eu não querer que toda pessoa que passe por mim
saiba que eu tenha alguma perda auditiva.
Como eu disse anteriormente, 500 reais por mês durante 12
meses não é uma conta fácil de pagar, mas foi uma das melhores que já tive o
prazer de fazê-lo.
Alguns relatos engraçados
Hoje, a tecnologia dos meus aparelhos é melhor do que a
dos que eu usava anteriormente, claro, e as pilhas não ficam apitando por uma
hora até acabar a carga (e acabar com a sua paciência nesse processo). Os
aparelhos são totalmente digitais e processam conjuntos diferentes de sons de
maneira distinta e totalmente personalizável. Por exemplo, sons mais altos e
que podem causar mais danos ao ouvido (como um show de rock) serão totalmente
abafados pelos aparelhos. Pois é, é horrível ir a shows com os aparelhos,
parece que o som vem de dentro de uma lata.
Já outros sons são trazidos à tona, como, supostamente, o
som da fala (supostamente, porque eu não percebo tanto isso). Por incrível que
pareça, os meus aparelhos estão programados para trazer muito à tona sons de
estalos. Não sei o porquê disso. Um som de estalo a cinco metros parece que
acontece do lado do meu ouvido, e isso termina sendo engraçado pelos sustos que
eu levo. Eu fico de voltar à fonoaudióloga para corrigir isso, mas nunca dá tempo
na correria do dia a dia.
Admirável mundo barulhento
Na primeira vez em que fui testar um aparelho, a
fonoaudióloga disse que nem todos se adaptavam e conseguiam usá-lo o dia todo.
Eu achei bobeira isso… Até usar. Os primeiros três ou quatro dias são terríveis:
é um mundo tão barulhento, principalmente na rua, que as dores de cabeça são
frequentes. São horas de sons um pouco mais altos martelando na sua cabeça. Só
que você se acostuma com o passar da primeira semana. Entretanto, se eu ficar
uma semana sem usá-los, vou ter que passar por todo esse processo de novo.
Então, eu só uso mesmo os aparelhos dentro do escritório
no meu trabalho e quando tenho aulas, ou seja, em casos bem específicos e
necessários. Em casa, eu quero ter silêncio – por favor! –, mas isso causa
problemas de comunicação, pois eu volto para os irritantes “hã?”, “quê?”,
“oi?”. O engraçado é que eu fico irritada pelas pessoas estarem falando mais
baixo do que eu consigo ouvir, quando os aparelhos estão ali, ao meu alcance.
Nesses momentos, eu entendo que é difícil compreender por que eu tenho
aparelhos e não os uso a todo o momento.
O certo é usar os aparelhos auditivos desde a hora em que
acorda até dormir, mas eu não consigo. Estou feliz assim, com minhas pequenas
ilhas de momentos de paz e sossego. Os momentos de relaxamento, para mim,
incluem tirar os aparelhos. Afinal, se tem alguma vantagem em usá-los, é poder
tirá-los. Então, eu vou me aproveitar dela.”
Fonte: MegaCurioso
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