Ler Braille: um conto em vários pontos
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As páginas em
Braille de um livro acomodam-se tão bem debaixo dos dedos, assim como as
palavras vão esculpindo as histórias escritas em nossa memória.
Ler Braille
provoca uma sensação única e, ao mesmo tempo incomparável, que nos remete ao
ato de enxergar. De certa forma aqueles relevos desenhados simetricamente no
papel, formam as imagens que precisamos para enxergar o mundo.
Como símbolo de
cegueira, o Braille traz um certo distanciamento se comparado a escrita
convencional. É fato que a tecnologia evoluiu ao ponto de oferecer aos cegos
outras alternativas de leitura e de escrita mais próximas de quem enxerga.
Leitores de
Braille tem se tornado raros, na mesma proporção em que os materiais produzidos
neste código somem das prateleiras, das escolas, das universidades. Por outro
lado as sinalizações pontográficas em estabelecimentos e alguns poucos produtos
vem fortalecendo a visibilidade das pessoas cegas na sociedade.
Embora eu tenha
sido alfabetizada em tinta, com fonte ampliada, o Braille representou meu
instrumento de libertação intelectual aos doze anos de idade. Aos poucos a
leitura dos textos didáticos foi sendo substituída pela literatura de
entretenimento.
No Brasil são
apenas duas grandes imprensas as responsáveis pela pequena reprodução
editorial, seguidos por outros pequenos núcleos de produção regional para uma
demanda muito maior do que conseguem atingir. Por isso, cada nova obra que
batia à minha porta, era recebida com euforia e gratidão.
Comemoro, com
entusiasmo, a possibilidade de sentir as palavras e de tatear as histórias,
embora a visita desses livros tenha quase desaparecido. As obras
disponíveis em Braille são doadas por instituições especializadas para pessoas
com deficiência visual, que escolhem o que vão imprimir em relevo.
Entrar em uma
livraria para adquirir um título em Braille sempre foi um sonho que persigo,
apesar de saber que dificilmente o realizarei. Por isso a opção pela leitura
digital, em computadores e dispositivos móveis passou a ser a alternativa mais
viável para manter o gosto pelos livros nesses últimos anos.
Nessa semana
troquei a tela dos dispositivos eletrônicos e a voz dos leitores de tela pela
agradável sensação tátil de zigzaguear entre pontos salientes no papel. A cada
página virada, uma emoção diferente, que ultrapassava as entrelinhas da
história para ganhar um contorno de satisfação e vitalidade. Afinal ler Braille
é renascer a cada instante. As letras ganham um movimento próprio, desenham as
possibilidades de um mundo acessível, que cabe debaixo dos dedos e dentro do
sonho de cada um.
Incentivar a
leitura em Braille e investir na divulgação desse sistema para ampliar a
produção editorial neste código é o caminho para que esses pontos salientes não
escapem das nossas mãos nem da nossa memória. Sou grata por ainda cultivar a
admiração pelo Braille e considerá-lo como meu companheiro para estudo e
entretenimento. Assim os vários pontos são capazes de escrever um conto
para quem vê além da visão.
* Luciane Molina é
pedagoga e pessoa com deficiência visual. Atua com educação inclusiva e
formação de professores.
Fonte: Guia Inclusivo
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