Pelo direito de ter acesso à arte: audiodescrição ‘traduz’ bens culturais visuais para cegos
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Em um mundo em que tudo é construído e
planejado para quem dispõe de todos os cinco sentidos em perfeito estado, é
'comum' que o diferente seja ignorado, esquecido ou nem sequer cogitado
Acessibilidade
ainda está distante. BH está entre as várias capitais brasileiras que não têm
cinemas, teatros ou museus oferecendo a audiodescrição para deficientes
visuais. Mapeamento mostra que, em 2009, 70% da população cega da cidade nunca
tinha ido ao cinema e 50% nunca tinha visto um filme em DVD.
“Na pintura, uma figura humana nua e
de pele clara, com pés, mãos, braços e pernas imensos, está sentada sobre uma
planície verde. Seu braço, dobrado, repousa sobre o joelho, a mão sustenta a
cabeça, bem menor que as outras partes do corpo. Ao lado, há um cactos verde e
um círculo amarelo, que remete tanto a flor de cactos, quanto ao sol sob o céu
azul”.*
O
texto acima é parte da audiodescrição de uma das obras de arte brasileiras mais
famosas, o 'Abaporu', de Tarsila Amaral. Nesse caso, as palavras que aparecem
na tela do seu computador substituem as palavras que seriam faladas, gravadas e
tocadas junto à obra em um museu ou galeria. 'Mas para que 'substituir' o que a
pintora conseguiu tão sensivelmente capturar por palavras?' - você deve se
perguntar. O questionamento é bem natural, na verdade. Em um mundo em que tudo
é construído e planejado para quem dispõe de todos os cinco sentidos em
perfeito estado, é 'comum' que o diferente seja ignorado, esquecido ou nem
sequer cogitado. Apesar de muito nova no Brasil, a audiodescrição é um recurso
de acessibilidade essencial para dar 'visão' à quem não enxerga.
Imagine
poder só ouvir um filme. Assim como outras formas de entretenimento, vide
programas de televisão, espetáculos de dança e peças de teatro, o cinema é
construído para quem vê. O silêncio entre as personagens, a transição de uma
cena à outra e até a trilha sonora subindo gradativamente para criar tensão não
funcionam sem estarem associados à imagem. Essa barreira manteve – e ainda
mantém – muitos deficientes visuais longe de produtos culturais. A
audiodescrição, técnica que faz a 'tradução' de todas as informações que
compreendemos visualmente, tem transformado isso e promovido a inclusão dessas
e outras pessoas que precisam de mais do que a imagem para entender e
experimentar o mundo.
O
servidor público federal Romerito Costa Nascimento, de 27 anos, teve baixa
visão até os 13 anos e depois disso perdeu a visão completamente. No Instituto
São Rafael, em Belo Horizonte, ele foi apresentado ao cinema quando a
audiodescrição ainda não existia formalmente no Brasil. Na época, professores e
funcionários transmitiam de maneira 'bem amadora' as informações das quais
Romerito e seus colegas não tinham acesso. Mas o que ele tinha dentro de sala,
não encontrava e ainda não encontra pela rua.
“Fui
a um teatro recentemente e a peça tinha muitos diálogos, mas tinha também muita
expressão corporal e até informações no cenário fundamentais para entendê-la.
Era filosófica. Garanto que entendi 70%, mas não entendi 100%”, afirma ao
tentar explicar a importância da técnica na vida do deficiente visual. “Nela os
personagens faziam pão de queijo e colocavam para assar lá mesmo, no palco. Só
fiquei sabendo disso depois que começou a cheirar. Para mim essa informação
veio tardiamente e talvez ela teria causado sensações diferentes para o
entendimento da peça se tivesse vindo antes. Agora eu preciso voltar lá com um
amigo para que ele me descreva algumas coisas e eu entenda completamente”,
completa.
Mas
a persistência e sede de Romerito por teatro, cinema e outras artes não é comum
à todos os deficientes. “A gente ainda encontra pessoas resistentes a acessarem
bens culturais justamente pela dificuldade de acessibilidade”, afirma. No
entanto, ele acredita que a audiodescrição é um “motor propulsor capaz de levar
pessoas a acessarem esses bens”.
A
teoria de que muitos deficientes visuais não tinham acesso à cultura chegou a
ser confirmada em um mapeamento feito pela mestre e doutoranda em
audiodescrição, Flavia Mayer, que estuda o tema desde sua graduação. O
diagnóstico, realizado em 2009 em Belo Horizonte, mostrou que 70% dos cegos entrevistados
nunca tinham ido ao cinema ou ao teatro. “O que chamou a atenção mesmo é que
50% das pessoas nunca tinham visto DVDs também. Isso mostra que o problema não
era o deslocamento ou o acesso”, pontua.
Desde
2000, a Lei 10.098 estabeleceu que as redes de televisão tivessem, no mínimo,
duas horas de programação semanal com audiodescrição. A proposta deveria ter
sido implementada em 2004, mas em 2009 – época em que a pesquisa de Flavia foi
realiza – a maioria dos brasileiros tinha sequer ouvido falar da técnica.
Somente em 2011 a lei entrou em vigor e a especialista acredita que hoje o
cenário mudou significativamente. “Pelo menos entre as pessoas com deficiência,
a audiodescrição não é uma palavra completamente estranha. A TV pode ainda não
estar muito acessível, mas as pessoas têm algum contato”, comenta.
Fora
da caixa preta, no entanto, a acessibilidade não chega a todo lugar. Enquanto
São Paulo e Rio de Janeiro têm alguns teatros e cinemas que oferecem o recurso,
em Belo Horizonte o único momento em que cegos podem assistir à uma sessão de
cinema é durante um festival anual com proposta inclusiva. “Não dá para dizer
que BH está atrasada porque o Brasil ainda está se desenvolvendo na área.
Locais com audiodescrição são muito pontuais hoje. Mas vejo as coisas
acontecendo de maneira significativa”, afirma Flavia.
'Pipoca e refrigerante como
qualquer outra pessoa'
Já
Romerito é categórico ao dizer que Minas Gerais está muito aquém de outros
estados brasileiros. “Existem projetos pontuais, instituições como a UFMG que
se preocupam com o tema e tentam incluir a ferramenta, mas o público de massa
não tem acesso a isso em BH, ao contrário do que acontece em outros estados”,
diz.
Como
a ferramenta de inclusão ainda é nova no país, fica difícil se falar no tamanho
da demanda que existe pela audiodescrição. O servidor e ativista acredita que
existe uma desconfiança entre os deficientes visuais em relação a esses bens.
“A ideia que temos é de que se não vamos encontrar acessibilidade, então para
que acessar? Isso gera a não criação de demanda. Aí escutamos produtores
dizerem que não existe procura por produtos culturais, sendo que 3% da
população brasileira têm deficiência visual ou são cegos”, destaca.
Romerito
espera o cumprimento de um direito e dispensa o sentimento de pena. “O mais
importante é mostrar que a audiodescrição é um investimento porque esse público
vai consumir cultura. Não é esmola. Essas são pessoas que têm condição e vão
consumir. A prova disso é que os projetos pontuais que existem têm adesão.
Existe também uma legislação. Ela fala de acessibilidade, direito de acesso, e
isso não tem que ser discutido, se é direito e é legal precisa que as
instituições entendam que não é um favor”.
Ele
ainda garante, que sendo clara ou não a demanda, “o desejo de todos
(deficientes) é poder ir ao cinema, ter acesso ao seu fone de ouvido, sentar
com pipoca e refrigerante e ter acesso à arte como qualquer outra pessoa”.
Mais profissionais
Uma
das ações necessárias para a mudança do cenário é aumentar o número de
audiodescritores no país. Para tanto, a Universidade Federal de Juiz de Fora
será a primeira no Brasil a lançar um curso de pós-graduação em Audiodescrição.
Até então, os cursos brasileiros que ofereciam a capacitação tinham carga
horária considerada insatisfatória para a exposição completa de conteúdo
necessário pelo audiodescritor. O curso criado em Minas Gerais terá duração de
um ano e meio e carga horária total de 405 horas.
Apesar
de grupos difundirem a técnica para Pernambuco, Bahia, Amazonas, Ceará, Rio
Grande do Sul e Brasília – além de Minas, Rio e São Paulo -, ainda não é
possível dizer que ela seja conhecida por todos os cantos do Brasil. Uma das
coordenadoras do curso e uma das pioneiras na implantação da técnica no Brasil,
Lívia Motta, pontua que, para desconcentrar a atuação dos audiodescritores do
Sudeste do país, a pós-graduação terá 50 vagas divididas em cotas por região
brasileira. “Esse profissional é de fundamental importância porque ele permite
o acesso à informação e ao conhecimento, ele abre portas e janelas para o
mundo. Faz o deficiente sentir-se respeitado e igual”, destaca.
Audiodescritora
desde 2005, Lívia não esconde o carinho que sente pelo trabalho que faz,
tampouco a satisfação que tem de fazê-lo. “É fantástico”, confessa. “Essas
pessoas sempre ficaram à margem de produtos audiovisuais justamente porque ir
sem entender é sempre uma frustração e isso acabava os afastando. Agora não.
Estamos formando um novo público, que tem acesso às imagens por meio das
palavras”, observa.
Essas
portas e janelas abertas têm promovido sede por mais e um novo uso para a
audiodescrição ter surgido a partir da demanda de um grupo que uma vez se via
excluído cultura e socialmente. A nova tendência é levar para eventos sociais,
como casamentos, partos, festas e outras celebrações o uso dessa espécie de
tradução também.
Primeiro casamento traduzido do
Brasil
O
professor William Cesar Rodrigues, de 47 anos, e a pedagoga Adriana Barsotti,
de 42, foram o primeiro casal de cegos a ter um casamento descrito ao vivo no
país. Até então casamentos aconteciam, mas os detalhes do vestido, decoração e
até as lágrimas ficavam por conta da imaginação de cada um. O contato prévio
com a audiodescrição foi o que inspirou Adriana a inovar levando a técnica
também para eventos sociais.
“Foi
um dos melhores momentos da minha vida”, diz sem pestanejar. “As coisas na
minha vida não são fáceis de se conseguir, então quando realizo um sonho como
esse é a coisa mais magnífica. O casamento ficou perfeito e não tem uma pessoa
que não diga que não foi o casamento mais lindo que já viram”, comenta.
Lívia
descreveu a igreja, as roupas, a reação dos noivos e de seus parentes. O
trabalho deu uma outra dimensão do que acontecia aos convidados também
deficientes visuais e aos próprios noivos que tiveram uma percepção mais
completa do que acontecia.
No
final do ano passado a audiodescritora tinha compromisso marcado com o casal
mais uma vez. Dessa vez para descrever o nascimento do primeiro filho deles.
Diante da atitude de Adriana, provavelmente não será a última vez. “Para
pessoas com deficiência tudo é mais difícil. Nossa sociedade não é inclusiva.
Sou pedagoga e trabalho em uma ONG que ajuda crianças com deficiência visual.
Para eu chegar a me formar não foi fácil. Eu tive que correr atrás de tudo e
até hoje é assim”, afirma.
Fonte:
uai
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