Professor cego de Rio Claro diz que em sua sala não existe bullying
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Fernando, que dá aula
para o 5º ano, também é cadeirante e se esforça para ser lembrado pelo que sabe
fazer, não por suas fragilidades
Marcos Rogério Lopes, do
R7
Arquivo pessoal/Oswaldo Fernando Moreira |
Ninguém cola nas
provas e quando um aluno se levanta, os outros avisam o professor, cego. Não é
exatamente uma denúncia, é mais um auxílio.
São dezenove ao todo,
trinta e oito olhos atentos de meninos e meninas entre 10, 11 anos de idade que
aprenderam na escola muito mais do que os conteúdos tradicionais: tornaram-se
experts em aceitação às diferenças. “Na minha sala não existe apelido ou
chacota. Ninguém aponta ou ri dos defeitos dos outros porque sabem que eu não
enxergo e sou cadeirante. Percebem que humilhar o outro não tem graça, não faz
sentido”, diz Osvaldo Fernando Moreira.
Fernando, como é
conhecido na Escola Municipal Jovelina Morateli, em Rio Claro, interior de São
Paulo, leciona, ao lado de uma professora auxiliar, as cinco disciplinas do 5º
ano do ensino fundamental: português, matemática, história, geografia e
ciências.
Tem 31 anos e há 18
quase morreu com a síndrome de Devic, doença neurológica que lhe tirou a visão
e a força das pernas, que não o sustentam em pé por muito tempo. "Foram várias
crises. Na primeira, eu me recuperei rapidamente. Daí em diante, cada vez que
eu tinha um surto, o retorno era lento e nunca mais fiquei 100%”, recorda.
As sequelas ficaram
restritas aos olhos e à medula espinhal. Sente-se forte psicologicamente e
fisicamente, até porque precisa de músculos para encarar a falta de
acessibilidade de seu município, com calçadas destruídas e construções que
ignoram pessoas como ele.
Também não ficou
revoltado. "Quando percebi, já não tinha mais jeito: estava cego e sem
andar." Então tocou a vida. “Só tenho certeza de que não posso fazer algo
depois de experimentar. Não desisto de nada fácil”, afirma. Seguindo esse lema,
mora sozinho, cozinha e limpa todos os cômodos sem a ajuda da mãe – que, apesar
de morar na mesma rua, custou a aceitar que ele tivesse sua própria casa.
"Comprei escondido e só a avisei quando já ia me mudar."
O que consegue ou não
fazer é uma dúvida comum na sala de aula. “Já me perguntaram se consigo tomar
banho ou se tomo água. As coisas mais engraçadas que você imaginar”,
diverte-se.
“Eles não entendem
como preparo comida, por exemplo. Então, quando faço bolo, levo para a escola
para provar.”
Os alunos costumam
lhe entregar objetos aleatórios e “perguntam, professor, o que você está
segurando?” Nem sempre acerta, mas todas as vezes aceita o desafio.
Barreiras? Onde?
Após perceber que
superava sem dificuldade as funções de auxiliar administrativo, cargo que
assumiu em 2008 no Centro de Habilitação Infantil Princesa Victoria, decidiu ir
além. “Eu ajudava a adaptar conteúdos para o braile e sugeria jogos e
atividades para os professores usarem nas salas.”
Percebeu que levava
jeito, fez pedagogia de 2012 a 2015, prestou novo concurso e passou outra vez,
“para espanto dos funcionários da Secretaria de Educação”. Ele conta que ao
avisar o órgão municipal que mudaria de cargo, em 2017, deram a entender que
desconfiavam de sua capacidade de lecionar. “Eu nunca tive dúvida. Essas
pessoas me aborreceram, sim, no começo, mas depois até tiraram foto comigo.”
A Secretaria também
fez pequenas adaptações no banheiro da escola, com a colocação de barras de
apoio e a mudança na porta, que passou a abrir para fora.
Tomou gosto
Fernando está
estudando para um terceiro concurso. Quer assumir outra turma, no horário da
manhã. Hoje trabalha de 13h às 17h30.
Declara que “nunca
teve dúvida” de que poderia comandar uma classe, mas admite também que seu
principal receio eram os pais dos alunos. “As crianças são puras, não têm
preconceito, mas os adultos são complicados, têm ideias prontas sobre tudo. Eu
tinha medo de não me aceitarem e de acharem que eu atrapalharia os filhos
deles.”
Nunca teve problema
com os pais, pelo contrário. “Recebo a visita de alunos e das famílias. Graças
a Deus me adoram.”
Mais do que as
matérias escritas nos livros, Fernando tenta passar aos pré-adolescentes um
conceito que poucos mestres teriam tanta autoridade para transmitir. "Acho
triste que as pessoas sejam definidas pelo que não podem fazer, por suas
deficiências. Eu queria ser avaliado e encarado pelo que entendo e por meu
potencial", analisa. E logo toma a palavra novamente, pedindo desculpa por
falar muito. "Eu nunca vou rotular um aluno por uma falha, quero enfatizar
suas qualidades, não seus defeitos", finaliza.
Sensibilidade
Nesssa busca de
aproximação, o caso que mais o orgulha é o de um menino de sua primeira turma,
em 2017. “Ele tinha o que se chama de mutismo seletivo, quando a criança, mesmo
sem problema na fala, escolhe um grupo restrito para se comunicar.”
O garoto só se
dirigia ao professor por bilhetes ou sinais, mas conversava com os amigos da
sala e com os pais. “Quando eu percebia que ele estava falando com alguém,
encostava minha cadeira de rodas perto, sem nunca cobrá-lo, respeitando-o. No
começo, me diziam que ele fazia umas caras meio estranhas, desconfiado, mas com
o tempo adquiriu confiança."
Aos poucos, o menino
foi se sentindo mais à vontade até que, um dia, quando Fernando já estava em
casa, recebeu dele uma mensagem no Facebook.
Pausa para uma
explicação. Fernando usa as redes sociais e a internet normalmente, em seu
computador e no celular, graças a um programa que lê todos os textos.
“E ele passou a me
escrever diariamente. Comentava tudo pela internet, mas, pessoalmente, seguia
distante”, lembra o professor. “E aí um dia ele criou coragem e trocou algumas
palavras comigo na escola. Até hoje nos falamos e sou o único adulto, além de
seus pais, com quem ele conversa.”
Fernando não usa sua
condição como limite, mas a inclui como ferramenta na aprendizagem. Há duas
semanas o colégio organizou o dia da família e coube a cada aluno confeccionar
um bilhete para ser entregue durante a festa. “Ouvi um menino reclamando que
não sabia fazer nada, e respondi: você não ama seus pais? Então escreve uma
mensagem dentro de um coração, ué. Ele disse que nem isso sabia desenhar. Na
hora me dirigi à lousa, rabisquei um coraçãozinho e disse: mas se até eu que
sou cego consigo, como é que você não consegue?”
Pensando um pouco
mais, talvez seja superficial dizer que usou a deficiência. Seguindo a
orientação de Fernando, de enfatizar as qualidades, o que ele utilizou foi
inteligência, capacidade de compreensão e criatividade para contornar uma
adversidade. É o que faz bons professores no dia a dia ao driblar dificuldades
com o que têm em mãos. "Antes de tudo, é preciso ter atenção e entender
cada aluno. Com sensibilidade e amor, tudo se resolve", ensina.
Fonte: R7
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