Brasil tem quase 6 mil presos com deficiência e apenas 11% estão em prisões adaptadas
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Levantamento feito via Lei de Acesso à Informação traça
panorama de um perfil invisível da população carcerária com deficiência e
mostra que a punição é dupla para presos com deficiência Confira a reportagem completa da Ponte Jornalismo, com
informações sobre as condições em que vivem pessoas com deficiência que cumprem
pena em regime fechado:
Por Luma Poletti, especial para Ponte
A cada duas semanas, Cláudia* vai visitar o sobrinho de 26
anos em uma unidade do complexo penitenciário da Papuda, em Brasília. O rapaz é
cadeirante e cumpre pena há 3 anos. “A situação é precária, ele não tem a menor
acessibilidade na cadeia. Ele tá pagando [a pena] duas vezes”, lamenta.
Na unidade prisional, o sobrinho de Cláudia divide a cela com
outros nove detentos, que o auxiliam na locomoção. A tia conta que o banheiro
não é adequado para um cadeirante: “Não tem suporte lateral para ele se apoiar,
para se locomover da cama para o banheiro. Tudo é muito imprensado no local
onde você faz as necessidades. Se já é ruim para quem não tem deficiência
imagina para quem tem”, relata.
O sobrinho de Cláudia faz parte do grupo de quase 6 mil
presos de uma população carcerária de 726.712 que possuem algum tipo de
deficiência. São cadeirantes, surdos, cegos ou possuem algum outro tipo de
especificidade que requer cuidados com a saúde e acessibilidade. É isso que
estabelece o §2º do Art. 79 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que
completou três anos em julho de 2018.
O quadro de saúde do sobrinho é considerado estável, mas
Cláudia afirma que não há acompanhamento médico. “O sistema lá diz que é
difícil, que não teria escolta disponível para levar ele ao hospital. Só no
caso de ele passar mal”. Ela lembra que certa vez foi buscar uma receita médica
para providenciar um remédio para o rapaz e funcionários não sabiam que havia
um cadeirante na unidade “eles nem sabiam da condição dele”, conta indignada.
“Tá certo, ele cometeu o crime, tá pagando, mas tinha que dar
as mínimas condições para esse ser humano. Vamos dar condições para essa pessoa
se regenerar, essa cadeia não é perpétua, como vai ser a vida dele quando ele
sair?”, questiona a tia, que gostaria que o sobrinho pudesse se dedicar aos
estudos enquanto cumpre pena. “A lei diz que a pessoa com deficiência tem
direitos. Só pelo fato dele estar preso a lei não vale para ele? Isso é muito
doído”, desabafa.
Os números – ou a falta deles – mostram que as unidades
prisionais deixam a desejar quando o assunto envolve acessibilidade ou saúde.
Informações consolidadas pelo projeto
Carcerópolis, por exemplo, mostram que apenas metade dos
presídios brasileiros conta com consultório médico.
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação junto aos órgãos responsáveis pela administração de presídios estaduais revelam que existem pelo menos 5.954 presos com algum tipo de deficiência no país (não foram considerados os casos de deficiência mental). Na prática, o número real é maior, uma vez que nem todos os estados forneceram as informações requeridas (veja a tabela ao final da matéria). Foi o caso da Secretaria de Administração Penitenciária da Paraíba, por exemplo, que admitiu não dispor dos dados sobre a condição física dos presos que estão sob sua tutela.
Chama atenção o caso de Minas Gerais: o estado com a segunda
maior população prisional do país (68.354, atrás somente de São Paulo, com
240.061) concentra mais da metade dos presos com algum tipo de deficiência. De
acordo com a Secretaria de Administração Prisional do estado, dos 3.549 presos
com alguma deficiência, 638 cumprem regime aberto, semiaberto ou são
monitorados por tornozeleira eletrônica.
Rodrigo Zamprogno atua como defensor público no estado e
explica que não há uma padronização na classificação dos presos com deficiência
física. Quando uma pessoa dá entrada na unidade prisional, ela passa por uma
junta médica que analisa sua condição. “Por lei é obrigatório ter a passagem
por médico, psicólogo, até porque isso faz parte da individualização da pena”,
afirma Zamprogno. Porém, a falta de padrões de classificação faz com que presos
com algum dedo do pé amputado, por exemplo, sejam categorizados como pessoa com
deficiência física. “Aqui considera-se essas lesões corporais como
deficiência”, explica o defensor do estado de Minas Gerais.
O próprio texto do Estatuto da Pessoa com Deficiência deixa a
questão em aberto: “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas”, diz o Art. 2º. A avaliação da deficiência, portanto, fica a
cargo de uma equipe de profissionais que deverão dar o veredicto a partir de
critérios como limitação no desempenho de atividades, impedimentos nas funções
e nas estruturas do corpo, restrição de participação, entre outros critérios.
As disparidades de dados levantados indicam que os parâmetros de avaliação são
subjetivos.
Em relação às condições das unidades prisionais para receber
esse público, Zamprogno afirma que a complexidade do sistema não permite a
separação e tratamento diferenciado. “Não tem o que fazer, essas pessoas ficam
encarceradas com outros presos que não têm deficiência”. Ele explica que, no
caso em que a deficiência foi adquirida posteriormente ao crime ou durante o
ato criminoso é possível conseguir o chamado indulto humanitário, que consiste
na extinção da pena. “Mas mesmo assim não se trata de uma regra geral. Cada
caso é analisado individualmente”.
Se a deficiência requer maiores cuidados com a saúde, como em
casos de sondas que necessitam ser trocadas com regularidade, o detento
normalmente é encaminhado para unidades com uma estrutura melhor. “Mas se a
pessoa é cadeirante, tem deficiência auditiva ou visual, ela fica no convívio
com outros presos porque realmente não tem unidade específica pra isso”, afirma
Zamprogno. “O ideal é que existissem unidades específicas para esse público. Eu
observo que eles ficam à mercê da boa vontade dos outros presos”, completa. Ele
aponta, por exemplo, que possuem deficiência auditiva ou que possuem problemas
de fala em geral apresentam um comportamento mais agressivo – consequência do
próprio processo de sociabilidade com os demais detentos, que fica comprometido.
Outros bancos de dados apresentam números diferentes sobre
essa parcela da população carcerária. O Cadastro Nacional de Presos, por
exemplo, uma iniciativa capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça, mostra
que existem apenas 202 pessoas cadastrada com deficiência física em todo o
país. Questionado pela Ponte sobre a diferença em relação aos números obtidos,
o CNJ informou que “os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões são
cadastrados a partir de informações obtidas em processos com réus presos
(provisórios ou definitivos). Talvez a disparidade esteja na metodologia da
contagem dos presos”.
Já o último relatório do Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (Infopen), divulgado no final de 2017, mostra que o país conta
com 1.793 presos com algum tipo de deficiência, seja ela física (1.169),
auditiva (217), visual (314) ou múltipla (93). Porém, o próprio documento
indica que o número real deve ser ainda maior, uma vez que apenas 65% das
unidades prisionais do país dispunham dessa informação.
O Infopen também mostra que 64% dos presos com deficiência
física “encontram-se em unidades que não foram adaptadas para suas condições
específicas de acessibilidade aos espaços, o que determina sua capacidade de se
integrar ao ambiente e, especialmente, se locomover com segurança pela
unidade”. Apenas 11% estão em unidades adaptadas e 25% em locais parcialmente
adaptados.
A falta de acessibilidade nas unidades prisionais também foi
observada na última edição do Plano Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, de 2015. Segundo o documento, o panorama atual gera “graves
entraves de convivência e desrespeito à dignidade humana”, e reforça a
necessidade da aplicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência nestes
ambientes. Existe até mesmo uma Diretriz Básica para Arquitetura Penal, editada
em novembro de 2011, que determina que “os estabelecimentos penais deverão
levar em conta a acessibilidade para pessoas com deficiência”. Mas como os
dados (e suas disparidades) revelam, muitos gestores sequer têm conhecimento
sobre a presença desses presos nas unidades.
A sensação de invisibilidade é real, relata o Padre Almir
Ramos, da Pastoral Carcerária: “É como se essas pessoas não existissem. Nas
unidades prisionais você vai encontrá-las em situações diversas, e no geral as
unidades não são preparadas”.
A marginalização deste público também pode ser identificada
pela ausência de ações e programas específicos. O CNJ afirma que não desenvolve
nenhum trabalho sobre o tema – e nem planeja algo neste sentido. O Ministério
Público Federal também não possui dados sobre o assunto e não informou sobre as
ações desenvolvidas junto a presos deficientes em unidades federais. A
Defensoria Pública da União informou que não há um programa específico voltado
para a aplicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência nas prisões.
Fiscalização
De acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, cabe ao Ministério Público e à Defensoria Pública assegurar os direitos de presos com deficiência – entre eles, a acessibilidade. De modo geral, os órgãos estaduais não mantêm bancos de dados e desconhecem o número total de PCDs em regime fechado. A medida que muitos defensores públicos acabam adotando é: a solicitação para que os presos com deficiência cumpram a pena em regime domiciliar, uma vez que a maioria das unidades prisionais não é adequada para recebê-los.
Na Câmara, o Projeto de Lei 7602/2014 garante que pessoas com
deficiência cumpram pena em estabelecimento distinto, adaptado à sua condição.
A autora da proposta, deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP), justifica que “no
sistema prisional brasileiro, as pessoas com deficiência cumprem penas nos
mesmos estabelecimentos que os demais presos. Não há instalações adequadas,
apoio médico específico e nem atividades voltadas às características da pessoa
com deficiência”.
O texto já foi aprovado pelas comissões de Seguridade Social e Família, Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Segurança Pública. Atualmente está na Comissão de Constituição e Justiça, onde aguarda parecer do relator, deputado Francisco Floriano (DEM-RJ), que já se manifestou pela aprovação.
A Ponte procurou a Subsecretaria do Sistema Penitenciário
para questionar sobre o caso que abre a reportagem e mostra a inadequação da
Penitenciária da Papuda, mas até o fechamento não houve retorno.
*o nome da entrevistada foi substituído por temer represálias
Fonte: Ponte
Jornalismo
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