Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Vetos sem Razão.
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Por Izabel Maior *
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, resultou de um longo processo
de dissenso, amadurecimento das propostas e revisão completa dos textos
iniciais, apresentados na Câmara em 2000 e no Senado em 2003, ambos pelo
senador Paulo Paim.
Sou testemunha dos fatos por ter exercido os cargos
de titular da CORDE (2002 a 2009) e titular da nova Secretaria Nacional de
Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD, até dezembro de 2010.
Em outra oportunidade darei meu depoimento, e, só
para aguçar o interesse, lembro que as discussões acaloradas sobre o “estatuto”
ocorreram em paralelo à elaboração do Decreto nº 5.296/2004, da acessibilidade,
enquanto no âmbito internacional surgia a Convenção da ONU, de 2002 a 2006.
Logo a seguir, em 2007 e 2008, houve a mobilização para ratificação
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como emenda
constitucional. O Decreto nº 6.949/2009 completou todo o processo de
ratificação.
Ressalto que na fase moderna da LBI, a relatora,
deputada Mara Gabrilli, estimulou alternativas descentralizadas de debate com o
movimento social, valorizando as contribuições de forma suprapartidária. Apesar
de enfrentar forte pressão de setores econômicos, a emenda substitutiva ganhou
apoio, inclusive do governo federal, após ter seus ajustes atendidos. Essa
negociação permitiu o compromisso pela aprovação do texto integralmente, tanto
no Congresso como na sanção presidencial. A relatoria do senador Romário
Faria foi célere, fez correções de forma, endossou o substitutivo e conduziu a
aprovação final no Senado também por unanimidade.
Considerando os compromissos assumidos, pode-se
afirmar que os vetos ao texto são a surpresa destoante do processo de
construção conjunta da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Desejando ser mais uma voz do movimento social (e
de algumas áreas da administração pública), passo à análise dos vetos
presidenciais aos quais minha experiência pode contribuir com argumentos para derrubá-los:
acessibilidade, acesso ao ensino superior e inserção no mercado de trabalho.
Avalio que os vetos não contrariam o interesse
público e tampouco são inconstitucionais. As razões apresentadas refletem uma
avaliação superficial, com suposições desprovidas de dados objetivos e estudos
para sustentá-las. Os vetos mais parecem refletir desconhecimento sobre
os entraves à inclusão das pessoas com deficiência, o que é inaceitável, ou que
foram ditados por interesses do setor econômico, sobrepujando os direitos das
pessoas às quais a lei visa.
Análise do veto ao artigo 32 – Desenho universal
O texto aprovado no Congresso promoveu a
incorporação e atualização de grande parte do decreto da acessibilidade,
Decreto nº 5.296/2004.
No decreto, o art. 28 diz: “Na habitação de
interesse social, deverão ser promovidas as seguintes ações para assegurar as
condições de acessibilidade dos empreendimentos:
I – definição de projetos e adoção de tipologias
construtivas “livres de barreiras arquitetônicas e urbanísticas”
A Lei Brasileira de Inclusão – LBI atualizou a
redação do inciso, substituindo o conceito de “livre de barreiras” por desenho
universal. É disso que trata o inciso II do art. 32:
“II – definição de projetos e adoção de tipologias
construtivas que considerem os princípios do desenho universal;”
Segundo a Mensagem da Presidência, o Ministério das
Cidades manifestou-se pelo veto sustentando que:
“Da forma ampla como prevista, a medida poderia
resultar em aumento significativo dos custos de unidades habitacionais do
Programa Minha Casa, Minha Vida, além de inviabilizar alguns empreendimentos,
sem levar em conta as reais necessidades da população beneficiada pelo
Programa. Além disso, no âmbito do próprio Minha Casa, Minha Vida, é previsto
mecanismo para garantia da acessibilidade das unidades habitacionais, inclusive
com as devidas adaptações ao uso por pessoas com deficiência.”
Antes de tudo, os princípios do desenho
universal correspondem ao conceito social da deficiência, no qual o ambiente é
a causa da restrição da participação. Em outras palavras, o desenho
universal reflete a nova concepção de um contexto inclusivo.
Considerar os princípios do desenho universal
significa ter em mente o interesse coletivo, a diversidade humana em sua
totalidade, consequentemente, ultrapassam-se os interesses específicos das
pessoas com deficiência.
O desenho universal atende ao interesse público,
pois diferentemente da garantia de unidades adaptáveis para usuários com
deficiência, o empreendimento concebido dentro dos princípios do desenho
universal servirá, na maior medida possível, a todas as pessoas, sem causar
dificuldades a ninguém, e atenderá a uma futura situação de perda funcional,
como no envelhecimento.
Acrescente-se que o projeto pensado de acordo com
os princípios do desenho universal servirá para os moradores ou familiares que,
a qualquer momento, venham a apresentar alguma deficiência decorrente de doença
ou acidente, ou o nascimento de criança com deficiência.
O veto conjectura sobre o aumento de custo, o qual
não comprovou. Na mesma linha, diz que os princípios do desenho universal não
levam em conta as reais necessidades dos beneficiários do PMCMV. Pergunta-se
por qual motivo os beneficiários diferem do maior número de pessoas que são
consideradas pelo desenho universal. Será que elas não merecem projetos que
proporcionem autonomia, conforto e segurança?
Entendo que o veto seguiu argumentação equivocada
também ao confundir habitação de interesse social com o PMCMV, do atual do
governo. A lei garantirá os direitos das pessoas de forma perene, ultrapassando
prazo de um mandato. O fato de hoje haver reserva de 3% de unidades
adaptáveis e kit com recursos específicos não exclui a adoção dos princípios do
desenho universal.
Concluo
dizendo que a redação original da LBI não ocasionará aumento indevido de custo,
não inviabilizará empreendimentos, melhorará a qualidade dos projetos de
construção e atenderá aos interesses dos beneficiários da política de habitação
de interesse social, porque o desenho universal visa o maior número de pessoas,
conforme seu próprio nome demonstra.
Análise
do veto ao Art.29 – Reserva de vagas nos processos seletivos
Nos
últimos anos, vem ocorrendo um esforço para incluir alunos com deficiência no
sistema geral de ensino na educação básica. A partir de 2005, o Programa
Incluir, sob a coordenação da SESU e SECADI/MEC, transfere recursos
orçamentários para fomentar medidas de acessibilidade e núcleos de inclusão nas
instituições federais de ensino superior. Iniciando em 2012, a Política de
Assistência ao Estudante ressaltou as condições de permanência dos alunos com
deficiência nas universidades federais, desde a acessibilidade no alojamento à
bolsa-auxílio. Também as instituições federais de educação técnica e tecnologia
passaram a incluir alunos com deficiência, mediante um leque de
providências como capacitação de professores, espaços e recursos pedagógicos
acessíveis e emprego de tecnologia assistiva.
A
despeito dessas medidas, de acordo com as estatísticas disponíveis no site do
MEC, em 2011 havia 23.250 matrículas de universitários com deficiência, somadas
as instituições públicas com as privadas, correspondendo a 0,34% do universo de
matriculados. Em 2009, 2010 e 2011, o número de alunos com deficiência nas
instituições públicas federais permaneceu estacionado em cerca de 6.500
matrículas. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2013, havia 30.000
alunos com deficiência em 7,3 milhões de matrículas, o que corresponde a 0,41%
do total. Ainda que tenha ocorrido crescimento, a sub-representação de
matriculados com deficiência expõe o grave problema das barreiras.
http://portal.inep.gov.br/visualizar/-/asset_publisher/6AhJ/content/matriculas-no-ensino-superior-crescem-3-8
Os
indicadores demonstram a necessidade de ações afirmativas para equalizar as
oportunidades de acesso das pessoas com deficiência ao ensino superior, técnico
e tecnológico, pois somente medidas de apoio à permanência não revertem o
quadro de exclusão mostrado nas estatísticas do INEP.
Para
corrigir progressivamente a distorção, a LBI determinou a garantia de
equiparação de oportunidade para o ingresso no ensino superior: adaptação das
provas do processo seletivo e reserva de 10% das vagas do processo seletivo
para alunos com deficiência. Ficará demonstrado que o veto é falho e acarreta
grave prejuízo para a inclusão das pessoas com deficiência.
O
texto original da LBI aprovado no Congresso apresenta:
“Art.
29. As instituições de educação profissional e tecnológica, as de educação,
ciência e tecnologia e as de educação superior, públicas federais e privadas,
são obrigadas a reservar, em cada processo seletivo para ingresso nos
respectivos cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional,
de educação profissional técnica de nível médio, de educação profissional
tecnológica e de graduação e pós-graduação, no mínimo, 10% (dez por cento) de
suas vagas, por curso e turno, para estudantes com deficiência.
§ 1º No caso de não preenchimento das vagas segundo
os critérios estabelecidos no caput deste artigo, as remanescentes devem ser
disponibilizadas aos demais estudantes.
§ 2º Os cursos mencionados neste artigo não poderão
excluir o acesso da pessoa com deficiência, sob quaisquer justificativas
baseadas na deficiência.
§ 3º Quando não houver exigência de processo
seletivo, é assegurado à pessoa com deficiência atendimento preferencial na
ocupação de vagas nos cursos mencionados no caput deste artigo.”
As razões de veto para atender ao solicitado pelo
Ministério da Educação foram:
“Apesar do mérito da proposta, ela não trouxe os
contornos necessários para sua implementação, sobretudo a consideração de
critérios de proporcionalidade relativos às características populacionais
específicas de cada unidade da Federação onde será aplicada, aos moldes do
previsto pela Lei no 12.711, de 29 de agosto de 2012. Além disso, no âmbito do
Programa Universidade para Todos – PROUNI o governo federal concede bolsas
integrais e parciais a pessoas com deficiência, de acordo com a respectiva
renda familiar.”
Para a melhor compreensão, a Lei nº 12.711/2012
mencionada no veto trata do ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio. A lei estabelece
os percentuais de vagas destinadas àqueles que preenchem as condições: ensino
médio completo na rede pública e autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, em
proporção no mínimo igual ao Censo do IBGE. Dessas vagas, 50% destinam-se a
estudantes de famílias com renda per capita até 1,5 salários-mínimos.
No que diz respeito aos percentuais, a exigência de
proporcionalidade em cada UF aplica-se aos três subgrupos numericamente muito
distintos: pretos, pardos e indígenas. No caso das pessoas com deficiência, a
exigência de diferenciação por UF não se sustenta, já que a reserva de 10% de
vagas na seleção pode ser fixa por estar muito abaixo do percentual de 23,9% da
população. Além dessa razão, a cartilha do Censo 2010, elaborada pela SDH,
mostra que há baixa variação de prevalência da deficiência nas regiões
brasileiras, a saber: 23,40% na Região Norte; 26,63% na Região Nordeste; 23,03%
na Região Sudeste; 22,50% na Região Sul e 22,51% na Região Centro-Oeste. Caso
não sejam preenchidas, as vagas revertem para os demais estudantes.
Outra alegação do veto é o fato de o PROUNI ter a
pessoa com deficiência entre seus critérios de concessão de bolsas. Trata-se,
contudo, de medida de apoio à permanência nas instituições privadas de educação
superior, sem considerar outros obstáculos e especificidades da pessoa com
deficiência. Ressalte-se, portanto que o PROUNI não é garantidor de ação
afirmativa no ingresso, fato que depende da adoção de reserva de vagas nos
processos seletivos, tal como a LBI criou.
Conforme demonstrado, desprovido de razão, o veto
ao artigo 32 – reserva de 10% das vagas nos processos seletivos – impõe grave
prejuízo ao direito de acesso à educação em todos os níveis de ensino.
Espera-se sua derrubada pelos parlamentares.
Análise do veto ao Art. 101 – Reserva de uma vaga
nas empresas de 50 a 99 empregados
“Art. 93. As empresas com 50 (cinquenta) ou mais
empregados são obrigadas a preencher seus cargos com pessoas com deficiência e
com beneficiários reabilitados da Previdência Social, na seguinte proporção:
I – de 50 (cinquenta) a 99 (noventa e nove)
empregados, 1 (um) empregado;
II – de 100 (cem) a 200 (duzentos) empregados, 2%
(dois por cento) do total de empregados;
III – de 201 (duzentos e um) a 500 (quinhentos) empregados,
3% (três por cento) do total de empregados;
IV – de 501 (quinhentos e um) a 1.000 (mil)
empregados, 4% (quatro por cento) do total de empregados;
V – mais de 1.000 (mil) empregados, 5% (cinco por
cento) do total de empregados.
§ 4º O cumprimento da reserva de cargos nas
empresas entre 50 (cinquenta) e 99 (noventa e nove) empregados passará
a ser fiscalizado no prazo de 3 (três) anos.” (NR)
Razões dos vetos
“Apesar do mérito da proposta, a medida poderia
gerar impacto relevante no setor produtivo, especialmente para empresas de
mão-de-obra intensiva de pequeno e médio porte, acarretando dificuldades no seu
cumprimento e aplicação de multas que podem inviabilizar empreendimentos de
ampla relevância social.”
As pessoas com deficiência lidam com barreiras em
seu cotidiano, todavia a discriminação e a falta de oportunidade revelam-se
mais enraizadas no momento de sua inserção no mercado de trabalho formal.
Na tentativa de reduzir os danos provocados por
essa atitude foi instituída a reserva de cargos nas empresas pela Lei nº
8.213/1991. Assim, a necessidade de cotas é um indicador de exclusão.
Mesmo os trabalhadores com alta qualificação, sem ascotas, ficam desempregados.
A série histórica da RAIS, elaborada pelo MTE, mostra que o crescimento das
contratações surgiu a partir da fiscalização.
Grande parcela de empresários resiste à
contratação, descumpre a legislação e não aceita as multas. Por esse razão, as
confederações empresariais mantém a revogação da “lei de cotas” em sua pauta de
lobby no Legislativo, com a apresentação de vários projetos de lei.
A LBI inovou ao buscar a inserção dos trabalhadores
com deficiência e reabilitados em empresas espalhadas em todo o território
nacional, aproximando trabalhadores com deficiência e empresas. Cabe salientar
que Câmara e Senado aprovaram a proposta.
O veto presidencial é destoante da política de
inclusão traçada pelo governo federal, revelando todas as características de
opressão do poder econômico sobre uma minoria sem a mesma força. Percebe-se que
o lobby das confederações empresariais exerceu sua capacidade de
pressão, cabendo ao MDIC solicitar o veto à reserva de UMA vaga nas empresas
com 50 a 99 empregados, mesmo com o prazo de três anos para se adequarem antes
da fiscalização.
O veto não apresenta motivos objetivos, concretos,
com dados quantitativos que comprovem o aludido impacto negativo. Tanto é assim
que o tempo verbal usado é “poderia” – uma dúvida, o futuro do
pretérito. A razão de um veto tem de ser afirmativa, demonstrando com clareza
os malefícios advindos da proposta. Não é isso que se vê. Esse veto é baseado
em conjecturas, especulações e levanta a hipótese de que a presença de um
trabalhador com deficiência “poderia” trazer impacto econômico prejudicial às
empresas. O trabalhador com deficiência ou reabilitado tem direitos e deveres,
cumpre regras e produz.
Na verdade os lobistas do MDIC querem
fugir das multas, pois mantêm a postura discriminatória ao não contratar
trabalhadores com deficiência e reabilitados. O custo aludido é o da multa,
quando houver a fiscalização. O interesse do empresário descumpridor está acima
do direito ao trabalho.
As
pessoas que acompanham a questão da inserção no trabalho veem claramente que os
empresários contrários às cotas alojados no MDIC usaram a caneta da Presidência
para vetar um grande avanço e, por sua vez, a Presidenta se deixou usar pela
falácia do poder econômico, em detrimento das pessoas com deficiência. É um
veto sem fatos concretos que o sustentem: não passa de manifestação da vontade
do poder econômico.
Acredito
que o Congresso Nacional, em suas atribuições constitucionais, irá considerar
os argumentos do movimento social das pessoas com deficiência, honrar sua
posição anterior, e derrubar os vetos sem razão, restituindo
a inteireza do texto da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
* Izabel
Maior é Conselheira municipal e estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência
no Rio de Janeiro. Mestre em Fisiatria pela UFRJ e especialista e
politicas públicas e gestão governamental. Representante oficial do governo
brasileiro no Comitê ad hoc da ONU para a elaboração da Convenção
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Ex-Secretária Nacional de Promoção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência/SDH. Coordenou a elaboração dos
decretos da acessibilidade e do cão-guia.
Fonte:
www.inclusive.org.br
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