Enem, vestibulares e a acessibilidade para os surdos
Compartilhe
Por José Petrola
Este mês tivemos o Enem com maior participação de estudantes com
deficiência auditiva – 8.799 candidatos declararam a surdez na inscrição, 88% a
mais do que no ano passado. O número talvez seja ainda maior, já que alguns
surdos usuários da língua portuguesa não declaram a deficiência por não
necessitarem de atendimento em língua brasileira de sinais (Libras) – embora a
presença da prótese auditiva possa causar mal-entendidos com fiscais que as
confundem com mecanismos de “cola”.
Porém, a prova apresentou muitas dificuldades para os surdos que
usam a Libras, como a estudante Natália Carla, que não conseguiu completar a
prova porque o intérprete traduzia literalmente as palavras, sem traduzir o
contexto (http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/11/nao-entendi-nada-afirma-estudante-surda-que-prestou-prova-do-enem.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1 ).
A estudante escreveu uma carta
sugerindo mudanças no exame. A matéria do G1 erra ao não diferenciar os surdos
usuários de Libras dos que usam o português, com o auxílio de aparelhos
auditivos ou implantes, refletindo o estereótipo de que todo surdo é incapaz.
Porém, chama atenção para um problema sério.
As provas do Enem devem seguir a Recomendação nº 001/2010 do
Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) que prevê “a
aplicação do princípio da acessibilidade à pessoa surda ou com deficiência
auditiva em concursos públicos, em igualdade de condições”.
Porém, no caso do surdo usuário de sinais, a questão é complexa.
A Libras não é uma linguagem que traduz o português para os sinais, mas uma
língua com estrutura própria e diferente da nossa. Não tem, por exemplo,
conectores, como preposições, nem flexões de tempo verbal ou de gênero. Além disto,
é uma língua visual e cinética. Quando lemos um texto em português, muitas
vezes “lemos em voz alta” internamente na nossa cabeça. Com a Libras isto não
acontece, porque não existe a “voz alta”.Língua de sinais é gesto e movimento.
Isto dificulta a compreensão do texto escrito, pois o processo mental para
entender as palavras é diferente.Não é impossível para o surdo aprender o
português escrito, mas é mais difícil.
A tradução palavra a palavra, como feita pelos intérpretes no
Enem, é o mesmo que nada. Seria como traduzir uma frase do português para o
inglês (ou italiano, alemão, japonês…) palavra por palavra. Uma prova como o
Enem, que avalia a capacidade de interpretação de textos, teria de ser
integralmente traduzida para a Libras, no contexto. Como os intérpretes não
podem “dar a resposta”, uma possibilidade (cara) seria fazer uma versão da
prova em Libras, por exemplo, em vídeo.
A Lei 10.436, de 2002 reconhece a Libras como meio legal de
comunicação e obriga as instituições públicas a oferecerem acessibilidade aos
surdos. Porém, ressalva que, no sistema educacional federal, estadual e
municipal a Libras não pode substituir a modalidade escrita da língua
portuguesa. Além disto, devemos lembrar que a maioria dos candidatos que presta
o Enem tem como objetivo o ingresso numa faculdade ou no mercado de trabalho
onde a língua corrente é o português.
O que chama atenção para a carência do ensino de português para
surdos no Brasil. Há uma necessidade urgente de estrutura, professores
qualificados e novos métodos que aumentem o acesso do surdo à língua
portuguesa. Podemos tomar como exemplo os surdos dos Estados Unidos, que vêm
usando alguns métodos para aperfeiçoar o ensino do inglês escrito e a tradução
entre o inglês e a American Sign Language (ASL), com o uso, por exemplo, de
linguagens auxiliares, gramaticalmente mais próximas da língua oral. O
bilinguismo também é inclusão.
Por fim, precisamos tomar cuidado para não reduzir a surdez à
Libras e não reproduzir o estereótipo de que surdos são incapazes. Embora hoje
exista menos preconceito, ainda há algumas barreiras para usuários de aparelhos
auditivos e implantes, que às vezes são obrigados a retirá-los durante as
provas. Não é possível promover a acessibilidade sem reconhecer a diversidade
dentro da surdez.
Fonte: Guia Inclusivo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu Comentário é muito importante para nós.