Pessoa com deficiência 206 anos antes da inclusão

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PARTE 4

Nota A: Repito os três critérios adotados nas Partes 1, 2 e 3 da tradução do capítulo 10 do livro British social work in the nineteenth century (Londres, 1956): /a/ Os termos técnicos utilizados nesse livro serão negritados. /b/ Entre parênteses, traduzirei ? com terminologia brasileira em vigor em 1956 ? os termos ingleses negritados. /c/ A equivalente terminologia atual utilizada no Brasil e comentários meus virão entre colchetes. 

Nota: As próximas Partes se referirão a pessoas com deficiência auditiva (adultos surdos), intelectual, psicossocial e física. Os surdos [As pessoas surdas]


Diferentemente dos cegos [pessoas cegas], os surdos [pessoas surdas] demoram para despertar a simpatia do público geral. Isto se deve em grande parte devido à natureza do defeito [deficiência] deles. Pois devemos compreender que a real calamidade (desgraça) [desafio] da surdez é a separação entre aquelas pessoas e os seres humanos normais [sem deficiência; comuns] através da ausência da linguagem e do poder de comunicação. Raramente tem sido possível, e quase nunca no século 19, para os surdos [pessoas surdas] explicar para o mundo o que a surdez realmente significa em solidão, em falta de compreensão do mundo em volta deles (daquelas pessoas] e nos sentimentos de suspeita de seus companheiros que resultam de [as pessoas surdas] estarem aprisionadas [parecerem estar voltadas para] dentro de si mesmas.

Uma vez que os canais comuns de comunicação são barrados, as pessoas normais [sem deficiência; comuns] tendem a tornar-se impacientes para com o surdo [pessoa surda] e quase sempre falham na compreensão das dificuldades suas [dela]. Além disso, houve uma tendência, neste país [Grã-Bretanha] e em outros, de classificar o surdo-mudo [pessoa surda] junto com o insano (demente) [pessoa com transtorno mental] e o imbecil (bobo) [pessoa com deficiência intelectual]. Quantos foram internados em asilos para lunáticos (hospícios) [hospitais psiquiátricos], nós não temos meios de sabê-lo, mas esta prática persistiu ao longo do século 19, conforme mostraram em 1886 os relatórios de inspetores escolares em Manchester etc.

Apesar desta falta de compreensão do público, houve muitas pessoas que desenvolveram o trabalho que vinha crescendo desde o século 16. Em 1526, Cardano, um professor da Universidade de Pádua, declarou que a educação dos surdos-mudos [pessoas surdas] era possível e que o fato de uma criança não ter audição não significava que ela carecia de inteligência ou da capacidade de aprender. Alguns anos depois, Ponce, um monge espanhol, declarou que ele ensinaria os surdos [pessoas surdas] a falar para que pudessem fazer suas orações. Dizia-se que ele tinha um motivo mercenário também pois, pela lei, a nenhuma pessoa muda [surda] era permitido herdar e, se os herdeiros de algumas propriedades espanholas fossem surdos, não havia o risco de sucessão em alguns casos. 

Portanto, Ponce poderia induzir o herdeiro a falar, mesmo que poucas palavras, a lei seria cumprida e o futuro da propriedade estaria assegurado. O sucesso de Ponce era limitado, mas não havia a menor dúvida de que, sob sua orientação, os alunos pronunciavam algumas palavras (K. W. Hodgson: The deaf and their problems. 1953, p. 85). Nos séculos que se seguiram, vários homens [pessoas] na Europa fizeram experiências com a educação dos surdos [pessoas surdas] e aos poucos construíram um corpo de conhecimentos a respeito deles. No século 19, dois homens [duas delas] se sobressaíram e muito da história do trabalho com os surdos [pessoas surdas] tem a ver com as diferenças que os separaram.

Charles Michel de l'Epée começou seu trabalho como professor em Versalhes em 1712 e, diferentemente da maioria de seus predecessores, que trabalharam pelo ricos, a sua principal preocupação foi com os pobres. A sua grande contribuição foi a sua codificação da 'língua de sinais', pois ele acreditava que há dois métodos naturais de comunicação, o falado e os sinais. Se o método da fala for negado através da incapacidade de ouvir e, portanto, de imitar, o surdo [pessoa surda] precisa desenvolver o método dos 'sinais', que depende da visão. Para ele, 'sinalizar'' era o melhor e, de fato, o único método para ensinar os surdos [pessoas surdas].

Por volta de 1782, ele entrou em contato com a segunda grande figura do século 18, Samuel Heinicke, professor alemão, que defendia que, se os surdos [pessoas surdas] fossem viver na sociedade comum, eles deveriam de alguma forma adquirir a fala. O caminho para conseguir isso, argumentava ele, seria o de viver e aprender em ambiente oral. Os sinais iriam provavelmente interferir com isso e seriam um perigo à promoção da fala. Portanto, ele se tornou o pai e o ativo promotor do que veio a ser conhecido como o 'método oral' [K. W. Hodgson, The Deaf and their Problems (1953), p. 130 e seg.]. Assim, por volta do final do século 18, houve duas distintas escolas de pensamento acerca do verdadeiro método para ensinar os surdos [pessoas surdas], a 'oral' (principalmente alemã na origem) e a 'manual' (principalmente de seguidores de Charles de l'Epée e seu discípulo Sicard).

O terceiro homem é de interesse dos britânicos. Thomas Braidwood nasceu em 1715 em Edinburgh, onde no devido tempo ele abriu uma escola. A esta escola foi enviado em 1760 um menino, Charles Sherriff, com um pedido para que lhe fossem ensinadas a matemática e qualquer outra coisa que ele conseguisse aprender. A partir disto, aumentou o interesse de Braidwood nos surdos [pessoas surdas] e outras crianças surdas foram encaminhadas à sua escola em Edinburgh. Mais tarde, sua fama se espalhou a tal ponto que ele decidiu deslocar-se para o sul e, em 1783, abriu uma escola para surdos [pessoas surdas] em Londres. A ela os ricos encaminharam seus filhos surdos, não só para mantê-los não visíveis por algum tempo, mas porque esperavam torná-los seres sociais dos quais os pais não se envergonhariam quando estes filhos retornassem. Braidwood tinha suas reivindicações extravagantes, apesar de se recusar firmemente a divulgar seus métodos, os quais ele manteve em segredo por toda a sua vida.

Por conta do crescente interesse nos trabalhos de Braidwood, a 'Sociedade para os Surdos Indigentes' [SSI], fundada em Londres em 1792, abriu na cidade de Bermondsey um internato para filhos surdos dos pobres, pois a SSI acreditava que apenas a escola residencial poderia efetuar uma transformação verdadeira. Na direção da escola foi contratado um discípulo e parente de Braidwood, Joseph Watson, que em 1806 publicou o livro 'The Instruction of the Deaf and Dumb' ['O ensino de pessoas surdas']. Agora que Braidwood havia morrido, Watson pôde quebrar os grilhões do segredo e proclamar, com Heinecke, a necessidade da fala e o modo como ele ensinou os surdos [pessoas surdas] a adquirirem linguagem. Embora outras escolas para pobres tivessem sido abertas em várias partes do país [Grã-Bretanha], geralmente com um membro família de Braidwood ou de Watson na direção, o apoio sincero pelo sistema 'oral' nem sempre foi mantido; e o ensino 'manual' e o ensino de 'sinais' foram introduzidos de tempos em tempos, como, por exemplo, em Birmingham. O resultado foi que em 1889, quando havia 30 escolas, cinco ensinaram pelos sistemas 'de sinais' e 'manual' e sete, apenas pelo 'oral', enquanto os demais usaram um método combinado (1889 0.5781-1, xix. Blind, etc., of the United Kingdom. Royal Commission. Report etc., vol. II, anexo 24).

Esta controvérsia sobre o método repercutiu através do anos até os dias atuais [década de 50 do século 20] e não mostra sinais de diminuição. Para quem está de fora, a verdade não pareceria estar na prática indiscriminada de qualquer dos métodos. Para algumas crianças, o método puramente 'oral' é aparentemente aceitável e bem sucedido, enquanto que para as outras os métodos 'de sinais' e 'manual' são bem melhores, e ainda para outras uma combinação de métodos parecia atingir o objetivo. A situação foi talvez mais bem sumariada pelo famoso debate perante a Sociedade Filosófica de Washington em outubro de 1833 (Ibid. Anexo 31. Citado do vol. VI do Bulletin of the Philosophical Society of Washington). O dr. Alexander Bell argumentou que o único defeito [deficiência] da pessoa surda e muda [pessoa surda] era a falta de audição, que a língua de 'sinais' não era menos natural para ele que qualquer outra e que ele poderia e deveria ser ensinado pelo método 'oral', uma vez que nenhum outro método lhe daria o domínio da língua inglesa ou a capacidade de ler e comunicar.

A isto o sr. E. M. Gallaudet respondeu que, longe daqueles que eram surdos e mudos [pessoas surdas] tendo apenas um defeito (deficiência), a falta de audição, eles poderiam ter muitas [deficiências]. Eles sofreram como outras crianças, estas por falta de inteligência, percepção, faculdade de imitar etc. Gallaudet citou a ideia de Charles de l'Epée de que sinais eram tão naturais quanto a fala e a afirmação de Moritz HIll, de Wessenfels, Prússia, de que das 100 crianças com hipacusia ensinadas pelo método 'oral' apenas uma conseguia conversar prontamente com estranhos sobre assuntos comuns. Disto ele concluiu que, conquanto o método 'oral' não devesse ser excluído, o entendimento da língua poderia ser dado pelo método dos 'sinais', em que muito mais conhecimentos do mundo poderiam ser compartilhados se o precioso tempo não fosse dedicado ao esforço, com frequência vão, de tentar fazer a criança surda falar. O sr. E. M. Gallaudet era o filho mais novo do sr. Thos. H. Gallaudet e foi enviado à Inglaterra para receber treinamento para ser professor de surdos [pessoas surdas] em 1815. Ele foi tratado com desprezo pela intimidade dos Braidwoods e foi para a França para se tornar aluno de Abbé Sicard, que aprendeu o método 'manual' com Abbé de l'Epée. Assim, Gallaudet retornou aos Estados Unidos com um completo conhecimento destes métodos; embora ele e seus filhos se mantiveram interessados nos métodos 'orais'.

Enquanto isso, seguindo o exemplo da 'Sociedade para os Surdos Indigentes', de Londres, escolas especiais foram fundadas em várias partes do país [Grã-Bretanha], e a elas os diretores-guardiões poderiam enviar seus filhos surdos a um custo não maior que o de suas instituições, de modo a dar-lhes a oportunidade de aprender no ensino especializado. Infelizmente, este poder foi pouco usado e muitos de seus filhos surdos foram provavelmente transferidos para asilos para lunáticos (hospícios) [hospitais psiquiátricos] ou permitidos a permanecer em suas instituições para serem objeto de zombaria de seus contemporâneos.

A criação de internatos em 1870 propiciou o ponto crítico, pois quando a escolarização de todas as crianças se tornou compulsória, a existência de surdos-mudos [pessoas surdas] era um problema premente, especialmente para algumas das instituições maiores. Em 1891, o Lorde Lothian obteve uma Lei, aplicável na Escócia, para a educação compulsória destas crianças em instituições distantes das suas áreas, se necessário. Crianças mais pobres, contudo, foram excluídas especificamente. Por volta de 1893, uma Lei semelhante na Inglaterra e no País de Gales tornou os internatos responsáveis pela educação compulsória de crianças surdas entre sete e 16 anos de idade, enquanto a Lei que tornava 12 anos a idade para conclusão de curso para crianças normais [sem deficiência; comuns] só foi aprovada em 1899. E, enquanto o tamanho de uma turma de crianças normais [sem deficiência; comuns] era de 60 aproximadamente, a Royal Commission on the Blind, Deaf and Dumb [Comissão Real sobre Pessoas Cegas e Surdas], em 1899, declarou que o tamanho de uma turma em escolas para surdos [pessoas surdas] não deveria exceder a 10. Assim, foi mostrado um considerável entendimento na educação destas crianças incapacitadas (deficientes) [com deficiência]. Todavia, os internatos com frequência fugiam de sua responsabilidade e os pais nem sempre eram cooperativos, às vezes sendo relutantes em admitir o defeito [deficiência] em seus filhos, preferindo que eles deveriam ganhar seu meio de vida, se possível.

O desenvolvimento de escolas especiais e classes especiais em internatos resultou no surgimento de um ramo especializado no ensino, com a sua metodologia e exames. Por volta de 1885, quando a 'Faculdade de Professores de Surdos e Mudos' ['Pessoas Surdas'] foi estabelecido, havia três instâncias de exames, incluindo a 'Faculdade Fitzroy Square' e a 'Faculdade Ealing'. Isto representou um importante progresso, pois embora elas estivessem divididas por causa da controvérsia sobre o 'método', elas se tornavam única em seu interesse nas crianças surdas. E este interesse não era confinado na sala de aula; estendia-se aos lares dos quais as crianças vieram, ou seja, aos cuidados subsequentes de seus alunos e às questões gerais relacionadas à causa e ao efeito da surdez. Duas associações profissionais de professores de surdos [pessoas surdas] foram formadas em 1894 e 1895.

Este artigo continuará na próxima edição, focando "Adultos surdos". 


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 


YOUNG, A.F.; ASHTON, E.T. British social work in the nineteenth century. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1956, 264 p. 

Romeu Kazumi Sassaki é consultor e autor de livros de inclusão social

E-mail: romeukf@uol.com.br 


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