NASCEU FERNANDO – UM PARTO COM AUDIODESCRIÇÃO

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Por Lívia Motta 

   Nasceu Fernando, o filhinho de Jucilene e Sandro. E já nasceu em um mundo mais acessível, tão acessível que seu pai e sua mãe, os dois cegos, puderam saber mais detalhes sobre sua chegada: como era a sala, quantos profissionais lá estavam, o que faziam, e o passo-a-passo da cesariana. A audiodescrição, recurso de acessibilidade comunicacional que vem ampliando o entendimento de tantos espetáculos, eventos e produtos audiovisuais; que também já transformou um casamento em palavras; registrou a posição e crescimento do bebê em um ultrassom e colaborou para o entendimento da mamãe e de convidados com deficiência visual em um chá de bebê, finalmente chegou à sala de parto.
   Jucilene é assim mesmo, reivindica, explica, esclarece, prepara o caminho para muitas outras pessoas com deficiência visual para que tenham melhores condições de acessibilidade, melhor atendimento na escola, no trabalho, em espaços culturais, restaurantes, hotéis e em outros locais. E não foi diferente em sua gravidez. Convidou-me para ir junto com ela e Sandro ao exame de ultrassom, pois queria saber mais detalhes, mais informações sobre seu filhinho; vislumbrou a possibilidade de fazer o chá de bebê com audiodescrição, considerando que lá estariam várias pessoas com deficiência visual; assistiu à reportagem sobre o médico que faz ultrassom em 3D, foi ao Rio de Janeiro, fez o exame e recebeu o molde em gesso do bebê. Uma alegria tão grande poder tocar o corpinho do pequeno Fernando mesmo antes de nascer.
   Mesmo conhecendo Jucilene há tanto tempo e sabendo desse seu jeito inventivo e inovador, confesso que fiquei supresa ao receber sua ligação quando ainda estava em Juiz de Fora para o 2º Encontro Nacional de Audiodescrição.
- Nasceu??? perguntei aflita.
- Não, teacher, ainda não. Está marcado para terça feira, dia 18.
Percebi de imediato o entusiasmo na sua voz revelando uma possível maquinação de alguma ideia nova.
-Teacher, o que você acha de fazer a audiodescrição do meu parto?
Fiquei alguns segundos em silêncio, boquiaberta, o coração acelerado, a boca um pouco seca…
- Ju, eu nunca havia pensado nisso antes, devo admitir, mas acho que pode ser maravilhoso, disse emocionada.
   Na véspera, já em São Paulo, conversamos de novo pelo telefone sobre como seria, se haveria a necessidade de usar o aparelho de transmissão móvel, pois não tínhamos ainda certeza se eu poderia entrar na sala de parto. Na Promatre Paulista, onde o parto foi realizado, há uma grande janela que dá para a sala de parto, por onde a família pode acompanhar quase tudo. Uma boa opção, se eu não pudesse entrar.
   Preparei uma lista de termos que poderiam ajudar no momento da descrição, como os instrumentos cirúrgicos: pinças, tesouras, afastadores, bisturis; a localização do corte, um pouquinho abaixo da linha do biquíni, as camadas de pele; a extração do feto, a sucção do líquido amniótico, a retirada da placenta; as funções dos profissionais que normalmente estão presentes em uma sala de parto.
   Finalmente chegou o grande dia. Fui cedinho para a maternidade e encontrei os dois tranquilos, dando uma entrevista para a TV Record. Sandro me confidenciou que depois que conheceu Jucilene, vira e mexe está na mídia… Fui apresentada ao Dr. Luiz Leite, diretor da Promatre Paulista. Expliquei sobre a audiodescrição e perguntei sobre a possibilidade de entrar na sala de parto. Com a resposta afirmativa, lá fomos eu e Sandro nos preparar, vestindo as roupas apropriadas: calça e blusa de algodão verde ou azul clarinho; colocando máscaras para cobrir nariz e boca, touca e proteção para os sapatos, para podermos entrar no Centro Cirúrgico, sempre acompanhados pelo atencioso Dr. Luiz Leite e pela delicada Samantha, do Departamento de Marketing da maternidade.
   Entramos. Jucilene já havia tomado a anestesia raquidiana e tinha um grande pano azul na frente de seu rosto. Sentamos eu e Sandro do lado esquerdo da mesa cirúrgica e fomos alertados para não tocar em nada que fosse azul. Dra. Fernanda e Dr. Paulo Rogério, os dois obstetras, um de cada lado, estavam começando a cirurgia, fazendo a primeira incisão. Sandro já havia me pedido para não falar sobre sangue. Isso ele preferia não ver… Uma pequena nuvem de fumaça subiu no ar seguida por um cheiro de queimado. Dra Fernanda explicou que a medida que vão abrindo, é necessário cauterizar alguns vasinhos.
   Sandro segurou, cuidadoso e companheiro, a mão da mamãe Jucilene, visivelmente emocionada. O anestesista, Dr. Leandro, a todo tempo, acompanhava as reações dela e lhe fornecia alguma informação.
A ampla sala de parto tinha paredes brancas, mesa cirúrgica bem centro, dois grandes focos de luz sobre a mesa, um balcão embaixo da grande janela, sobre o qual há uma balança, formulários de controle e computador; um bercinho onde o bebê é colocado logo que sai da barriga para os primeiros procedimentos; prateleiras em aço inoxidável para os instrumentos cirúrgicos e a máquina do anestesista com os equipamentos de monitoramento do paciente.
   Presentes na sala, além da Dra. Fernanda, Dr. Paulo Rogério e Dr. Leandro, Dra. Flávia, pediatra, Marcilene, enfermeira obstetra, Luciana, técnica de enfermagem, e Vilma, circulante de sala. Dr. Luiz Leite e Samantha permaneceram o tempo todo, assim como o cinegrafista da TV Record.
   Fernando já estava quase chegando, sua cabecinha já aparecia no meio dos afastadores… O líquido da bolsa já havia sido drenado e a médica informou que fariam alguns movimentos mais bruscos. Nasceu!!! Um menino forte, rosado, cabelinhos bem pretos, gorducho. Não pude conter a emoção!!!
   - Nasceu Ju, Sandro!!! É lindo, lindo, o Fernando!!! Que meninão!!!
Seja bem-vindo à luz, querido Fernando!!!
   O cordão umbilical foi cortado, o bebê passou para as mãos da enfermeira obstetra. Ela aproximou-o de Sandro, que tocou levemente os pezinhos e corpo do pequenino Fernando.  Colocaram-no dentro do bercinho e começaram a limpar seu corpinho e fazer os procedimentos habituais. Eu e Sandro nos aproximamos.
   - Agora, a enfermeira está passando uma tinta preta no pezinho de Fernando e pressionando-o sobre uma folha de papel para deixar registrada a impressão digital plantar, eu disse.
    Passaram novamente a tinta no pezinho e fizeram a impressão no braço de Sandro.
   Pude observar a delicadeza, a atenção dos profissionais ali presentes que souberam atender à necessidade do papai e da mamãe que não enxergam. A enfermeira obstetra prontamente começou a descrever que estava colocando uma touquinha branca no bebê, com o nome Promatre escrito em azul. E foram, com naturalidade, introduzindo mais algumas informações descritivas, o que sem dúvida, demonstrou sensibilidade e profissionalismo.
   Como já falei no outro post sobre ultrassom com audiodescrição: médicos, dentistas, fisioterapeutas e outros profissionais da saúde podem introduzir mais informações descritivas em seus atendimentos a pessoas com deficiência visual, o que certamente irá informar, complementar o entendimento sobre o ambiente, instrumentos e procedimentos, baixando, com isso, a ansiedade e colaborando para um atendimento com mais qualidade, comunicação e interação. Uma atitude respeitosa que demonstra a preocupação com acessibilidade e inclusão.
   Fernando foi enrolado em um lençol branco e colocado nos braços de Sandro, um momento mágico de carinho e emoção, o primeiro contato entre pai e filho. Impossível traduzir em palavras tamanha ternura. Em seguida foi a vez de Ju receber o pequeno Fernando em seus braços e sussurrar palavras de boas vindas em seus ouvidos. Emocionada, ela acariciou seu rosto, a orelhinha, deslizando cuidadosamente a ponta dos dedos por cada detalhe e curva de seus traços. O pequenino Fernando parecia reconhecer a voz doce da mãe e responder ao seu toque delicado.
   Eu sempre digo que ser audiodescritor é poder ver o mundo com palavras, um privilégio grande poder ser os olhos do outro em espetáculos, produtos audiovisuais ou eventos sociais. O parto do Fernando foi um verdadeiro presente de Natal. Muito obrigada, Ju e Sandro por me permitirem participar de um acontecimento tão especial na vida de vocês!

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Um comentário:

  1. A audiodescrição é um instrumento fantástico! Os deficientes visuasi, cegos e os de baixa visão, podem agora enxergar o mundo através deste recurso. Só é preciso difundir mais a sua existência e tornar de fato concretizado, para que assim possibilita essas pessoas o direito de inclusão a cultura de nosso país.

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